Comecei minha carreira como analista do mercado de capitais em um grande banco de investimento. Minha equipe fazia estudos financeiros de empresas para apoiar reuniões em que a Diretoria decidia se valia a pena ou não lançar títulos de dívida.

Havia diferentes motivos para um cliente endividado nos procurar, e compreensivelmente tentávamos descobrir se ele teria condições de sobreviver e pagar suas dívidas no futuro, especialmente aquelas que mantinha com o próprio banco. 

Ao examinar os números das primeiras empresas, percebi que existia um padrão.

Repetia-se um padrão marcado por elevadas despesas financeiras, problemas de caixa, endividamento crescente, resultados piores, aumento das despesas financeiras, mais problemas de caixa, etc.

Ou, por outra: lucros diminuindo ou se transformando em prejuízos de um ano para outro, despesas financeiras subindo junto com as operacionais, dificuldades crescentes para obter crédito, prejuízos maiores, pedidos de socorro.

Não sei quando escrevi pela primeira vez em um relatório que se tratava de um processo de causação circular com efeitos cumulativos que levava a empresa a uma situação agravada de enfraquecimento financeiro. Cheguei a pensar que eu havia inventado a expressão, até ver que o criador havia sido o economista sueco Gunnar Myrdal, na década de 50. Provavelmente li algum texto dele e guardei aquilo na memória até que algum gatilho despertou a lembrança.

Percebi que a frase se aplicava a boa parte das empresas que a equipe analisava. Meus colegas analistas criaram suas variantes da frase. Com palavras parecidas ela se alastrou nos relatórios, até que os coordenadores mandaram parar com aquilo. Havia deixado de ser uma informação útil, e provavelmente estávamos a escrever algo que os diretores já sabiam.

"O importante era manter a torneira aberta."  Será mesmo?

Explicaram então que a constatação era até correta, mas que nosso papel de analistas não era o de dificultar a concessão de crédito; disseram que os empresários tomadores de empréstimos se davam por felizes quando conseguiam obter financiamento, ainda que o custo fosse alto. Mais precisamente, os empresários ficavam aliviados ainda que o custo fosse muito alto. E que o dever da instituição financeira era apenas o de manter a torneira aberta para não interromper o fluxo.

O banco não mudou de estratégia em razão de nossos relatórios. Na verdade, não se importava muito com eles. Eram uma espécie de muleta para discussões, continham um ou outro dado técnico que poderia complementar um raciocínio e serviam como um sinal de que a área técnica da instituição podia fornecer sua contribuição.

Os anos que se seguiram mostraram os limites da ideia da torneira, quando muitas daquelas empresas analisadas começaram a quebrar. Não foi um desastre para o banco porque ele havia adotado medidas para se proteger, mas houve perdas e elas foram significativas. Fiquei pensando se não teria sido possível, para aquelas empresas, ter seguido outro caminho para evitar que a situação se deteriorasse ou pelo menos para atenuar a gravidade da queda.

As empresas estavam doentes.

Coisas como disputas judiciais, enfermidades, alianças insustentáveis e conflitos bélicos podem gerar menos danos quando certas ações são adotadas a tempo. Guardadas as diferenças, ver aquelas empresas endividadas como se estivessem doentes pareceu ser uma comparação cabível.

Antes que a metáfora me arrastasse para considerações sobre técnicas de exame, instrumentação, complexidade da intervenção, posologia e terapêutica, concentrei-me mais em conhecer as providências práticas que haviam contribuído para melhorar a situação das empresas que haviam sofrido menos ou que se recuperaram. Foi a primeira vez que ouvi a palavra "turnaround".

Um turnaround é uma sequência de passos para uma empresa se recuperar, corrigindo uma situação de declínio ou estagnação.

Uma operação de turnaround abrange ações estratégicas (ligadas principalmente a competitividade, decisões de investimentos e definição de políticas) e operacionais. Requer análises para detectar falhas e a elaboração de planos de reestruturação. Depende de certas condições que cabe aos condutores do processo criar ou, pelo menos, favorecer. Envolve certa complexidade e incerteza, além da capacidade de lidar simultaneamente com questões de cultura interna, finanças, tecnologia e as relações da empresa com o contexto em que opera.

Por que essas coisas acontecem?

Os sintomas mais evidentes de problemas são perdas e endividamento, mas nem todo endividamento é ruim. Se for compatível com o caminho que a empresa escolheu para crescer, e se não houver superado certos limites, pode estar a viabilizar o processo de criação de valor, que é uma das principais razões de ser da empresa.

O problema está na capacidade de pagar e na disciplina de controle para que as dívidas não superem aquilo que a empresa pode suportar. A qualidade do endividamento depende de custo e prazo com que a empresa possa lidar, sem necessidade de tomar novos financiamentos para cobrir os antigos.

Para quê as suas dívidas estão servindo?

 Assim como toda escolha racional, o benefício gerado pela dívida deve superar seu custo. Dívidas assumidas para dar apoio ao crescimento, para corrigir necessidades momentâneas de giro, para tornar possível um investimento fazem parte do jogo. Dívidas assumidas para substituir outras já existentes, cobrir déficits recorrentes de caixa e para compensar a falta de capacidade de gerar recursos são ruins.

A lógica da busca de solução tem a ver com o exame racional dos fatos, a visão de alternativas existentes, a exploração de possibilidades relacionadas com o uso de meios e a construção de alternativas , a promoção de escolhas e as providências para correção de problemas e construção de novas e melhores condições de operação.

O que fazer, então?

Turnarounds são bons exemplos da arte de transitar entre o necessário e o possível. As práticas mais usadas pelas empresas combinam trabalhos de diagnóstico, detecção de causas, revisão da forma de trabalhar, formulação de caminhos de solução realistas e escolha entre eles, eventualmente combinando-os.

Atividades desse tipo requerem, das partes envolvidas, honestidade para consigo mesmo e para com os demais; e discernimento suficiente para aceitar como real o fato de que a organização se aproximou de um ponto perigoso, reconhecer que o processo de deterioração avançou demais e assumir que as soluções aplicadas até então não têm se mostrado suficientes.

Geralmente fazem parte de estratégias de recuperação providências como as seguintes:

Grupo 1: diagnóstico, planejamento e análise

  • Investigar as causas do endividamento, para poder entender as condições de atacá-las:

              - qualidade dos controles

              - taxas de juros praticadas

              - volume e modalidades das dívidas

              - ineficiências da operação do negócio

              - qualidade das condições de comercialização dos produtos e serviços e seus tipos

              - estudo do volume de vendas/caixa gerado/ lucro de cada produto ou linha

              - forma e intensidade do processo competitivo no segmento

              - capacidade de entender e lidar com determinantes da estratégia que afetam a competitividade da empresa, e com suas tendências

  • Examinar a possibilidade de promover a recuperação por meio de recuperação judicial
  • Examinar as condições para venda do negócio
  • Projetar a necessidade de capital de giro e estudar meios para trabalhar com capital de giro próprio ou melhorando as condições de pagamento a fornecedores, aí incluído o prazo
  • Separar claramente, nos controles, fundos da empresa dos fundos dos sócios
  • Identificar possibilidades de redução de custos e despesas, diminuição de desperdícios, aumento de eficiência administrativa e verificar possibilidades de promover programas ordenados de redução de custos
  • Examinar o grau de exposição a modalidades indesejáveis de financiamento (factoring, agiotagem, financiamento de curto prazo)
  • Mensurar o grau de risco das dívidas existentes, considerando a sujeição a oscilações cambiais, a forma pela qual a dívida está indexada e a suficiência das providências de hedgeamento já adotadas
  • Hierarquizar compromissos, classificando-os conforme as consequências de eventuais atrasos em pagamentos para que possam ser selecionados e parcelados

 

Grupo 2: obtenção e emprego de recursos

  • Verificar quais ativos da empresa poderiam ser vendidos
  • Examinar possibilidades de melhorar a gestão dos estoques
  • Verificar condições de que os sócios promovam aportes de capital destinados à redução de dívidas
  • Examinar possibilidade de venda de participação acionária para agentes capazes de contribuir para capitalizar a empresa
  • Examinar possibilidades de captação de recursos direta junto aos sócios

 

Grupo 3: rearranjar, reformular, alargar limites

  • Examinar condições de receber recursos adiantados de clientes
  • Verificar possibilidade de reduzir prazos de recebimento e de manutenção de itens em estoque
  • Otimizar o emprego do capital de giro, combinando movimentos planejados de entrada e saída; localizar momentos de maior volatilidade, identificar causas e estabelecer providências que possam contribuir para reduzir o problema
  • Gerir adequadamente inadimplências e atrasos, estreitando os esforços de cobrança
  • Explorar possibilidades de tornar mais eficiente o uso de recursos na produção
  • Examinar possibilidades de obtenção de fundos de longo prazo
  • Criar alternativas no que diz respeito a novas instituições bancárias, para melhorar a posição em situações de negociação e para poder contar com mais fontes quando forem eventualmente necessárias
  • Renegociar dívidas regularmente, considerando as expectativas de caixa e considerando a possibilidade de obter melhor custo de financiamentos, prazos e garantias que sejam mais vantajosos para a empresa

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Projetos de reestruturação profunda têm a ver com uma atitude que não deve se restringir a situações de crise: a disposição de corrigir distorções em qualquer tempo, e não somente quando a organização é forçada pela necessidade.

Saúde financeira é algo para pensar todo o tempo, e não só quando as coisas apertam.

Momentos difíceis exigem providências de recuperação; momentos menos agitados recomendam, mesmo assim, precaução. Em comum nos dois casos deve estar presente uma boa gestão: alocação racional de recursos e bom posicionamento estratégico; controle de dívidas e domínio da gestão do capital de curto prazo; busca de eficiência e minimização de desperdícios. Durante as crises, fica mais fácil saber se aquelas pessoas que se dizem aptas a realizar mais com menos são realmente capazes de cumprir o que prometem. 

Saúde não tem preço, mas tem custo.

Depois que deixei a atividade de analista no banco, passei a trabalhar em uma empresa de planos de saúde onde vários dos administradores eram médicos. A comparação entre saúde financeira e saúde de um organismo biológico era para eles algo banal. Para mim, soava como uma espécie de confirmação.

A ideia de tratar um paciente antes que sua situação se agravasse era vista como algo tão óbvio que nem deveria ser preciso lembrar. Dizia-se que cuidados com prevenção evitam problemas maiores tanto para pessoas quanto para negócios, sugerindo que todos já deveriam saber disso.

Talvez esteja aí uma daquelas verdades amplamente conhecidas, mas que nem sempre recebem a devida atenção.

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Se você quiser ler outros artigos que escrevi sobre estratégias de turnaround, basta clicar nos títulos a seguir:

Como fazer um turnaround - o toque francês de Bernard Tapie 

Turnaround na cabeça: filosofia e o mindset de Bernard Tapie


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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.

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