Em 1998, uma das empresas líderes do setor de saúde suplementar resolveu assumir um volume anormal de obrigações em moeda estrangeira, diante de uma situação de oferta de crédito abundante a taxas de juros que pareciam ser vantajosas. Seus gestores alardearam o que entendiam ser sinal de vivacidade, diligência e capacidade de aproveitar oportunidades. Quando em 1999 o regime cambial brasileiro se exauriu e uma maxidesvalorização fez com que a moeda brasileira perdesse mais de 32% em relação ao dólar, a empresa viu o volume e os custos de sua dívida bancária subirem da noite para o dia, em movimento que não teve reversão. O relatório da administração do ano seguinte declarou que a não ser por este acidente relacionado com um elemento supostamente fora de seu controle, a organização contava com uma gestão financeira impecável; nenhuma referência a aspectos como política de exposição,  limites de risco aceitáveis, leitura de cenários e uso de instrumentos adequados de governança.

Há alguns anos, por entender que precisavam se diferenciar uma da outra e ocupar nichos de mercado mais lucrativos,  algumas das grandes empresas de planos de saúde suplementar se lançaram em uma escalada de investimentos que envolvia a compra de helicópteros e a construção de unidades clínicas luxuosas. O efeito resultante sobre as receitas, e sobre a evolução dos custos e dos lucros se revelou um tanto diferente do que esperavam.

Em 2015 um dos braços dos maiores grupos operadores de planos de saúde do país viu se consumar um processo de longa e tumultuada quebra com alto custo para seus clientes, fornecedores e entidades que tiveram de assumir o ônus do desequilíbrio de uma carteira inviável. Observou-se então que a organização operava com um sistema de decisão caro e disfuncional, um modelo de expansão que multiplicava irracionalmente gastos com estrutura duplicando serviços, práticas tributárias pouco recomendáveis e mecanismos de governança claramente insuficientes. 

Recentemente, uma empresa de médio porte do setor, conhecida pelas deficiências de organização interna e de profissionalização dos quadros, ausência de processos estruturados e dificuldade em gerar números auditáveis declarou que uma de suas competências críticas era a de saber operar com margens de lucro estreitas e haver desenvolvido uma relação histórica com clientes de baixa renda de regiões periféricas metropolitanas, o que supostamente a deixaria menos sujeita à competição com concorrentes esnobes. Hoje seus gestores buscam investidores que poderiam dar acesso ao capital necessário para se expandir, embora compreendam que as limitações do negócio o deixem em desvantagem.

Não é difícil imaginar o que tem acontecido com a qualidade dos serviços prestados por empresas como estas. Uma característica comum a elas é a notável dificuldade em se adaptar a novos cenários, tendo se especializado em se conformar a condições de operação que ou eram condescendentes demais com ineficiência e improvisação, ou a levaram a buscar caminhos de estruturação que não souberam corrigir quando foi preciso. Em todos os casos faltou capacidade de diagnóstico, noção de limites e amplitude de visão no estabelecimento de critérios de decisão. Faltaram crítica e autocrítica, assim como a capacidade de ler e entender o que acontece à sua volta.

Mudanças de cenário podem fazer com que capacitações já desenvolvidas e alto grau de ajuste ao ambiente se convertam em pontos fracos. Estarão um passo à frente as empresas que forem capazes de entender a direção do processo de desenvolvimento do mercado, antever possibilidades de mudança e discernir entre aquilo que é essencial e o que não é; haverá também competências que se farão úteis sob quaisquer condições e que valeria a pena reforçar independentemente de qualquer coisa. 

No setor de saúde suplementar o fim da inflação, mudanças nos regramentos, alteração nas condições demográficas e pressões de custos têm contribuído para enfraquecer os agentes e sugerir a necessidade de ações para que o setor reverta tendências que hoje lhe são desfavoráveis. Em um momento no qual mudanças no ordenamento não são improváveis, é útil entender o alcance que têm providências individuais e alternativas de ação combinada entre os agentes, assim como meios de distribuir a riqueza produzida e induzir os agentes a comportamentos benéficos para o conjunto.

A marcha reduzida exige outras competências. O mercado de planos de saúde tem experimentado  movimento de severa retração desde 2014, com diminuição do número de beneficiados, quebra de operadoras e intervenções da Agência Nacional de Saúde. É um setor que opera com ineficiência sistêmica associada a indutores divergentes de atuação e uma lógica incongruente de motivação e recompensa; encarecimento dos itens que integram os serviços; evolução técnica que se traduz em sofisticação e complexidade caras; tensão na relação entre os agentes. 

Situação difícil, com motivos para isso. O mercado tem experimentado limitações relacionadas com a queda no poder aquisitivo dos compradores; envelhecimento do universo atendido, a elevar a incidência de doenças; hábitos inadequados de saúde dos usuários; movimento de concentração expressiva e intensificação da rivalidade entre os players; dificuldades no repasse de custos, nas negociações com outros agentes da cadeia produtiva; intervenções oficiais para garantir o cumprimento de compromissos com fornecedores e o fisco; alto risco de judicialização de demandas a aumentar o potencial de perdas.

Não vai bem, obrigado. O nível de atividade do produto plano de saúde se liga diretamente aos patamares de emprego e renda das famílias, especialmente em uma região como a Sudeste, que concentra o maior número de beneficiários com relações mediadas pelo vínculo empregatício. 

Dados de setembro de 2016 indicam que os planos de saúde perderam 1,5 milhão em um período de 12 meses no país. Na região Sudeste o número passou de 33,2 milhões para 32,1 milhões. São Paulo foi o estado mais afetado, com a extinção de 549 mil vínculos. 

O decréscimo é explicado pela deterioração do mercado de trabalho e pela queda no nível de renda das famílias. Pessoas desempregadas deixam de participar do sistema pelos planos que são pagos pelas empresas contratantes, e tem-se verificado redução na aquisição de planos empresariais e também nos próprios. As expectativas mais favoráveis para 2017 são de estabilização da taxa de decréscimo, estimada em 1% para este ano, em um universo de 70 milhões de usuários de   planos de saúde no país.

A condição de sempre. Efetiva recuperação da demanda dependeria em grande medida da recuperação da situação econômica. Enquanto a recuperação não acontece, estarão em melhor posição para sobreviver as empresas que forem capazes de operar com sistemas de informação capazes de garantir uma boa gestão da eficiência, que sejam capazes de evitar desperdícios e promover reduções planejadas de despesas, aprimorar a qualidade de seus serviços e ter sob controle os custos e as relações com seus fornecedores.

Lógica própria, divergências e uma inclinação íngreme. Embora existam variantes de modelos de negócio no setor, o sistema funciona principalmente pela formação de um fundo com o valor arrecadado dos beneficiários, o qual a operadora administra cobrindo as despesas dos que se valem dos serviços. Sendo elevados os custos, a falta de controle da necessidade de solicitações de procedimento e o reduzido esforço para substituir procedimentos por outros de efeito equivalente e menor custo têm contribuído para aumentar o desequilíbrio na conta das operadoras. 

Assim como acontece em outros países, os custos relacionados com saúde têm crescido, colocando-se como vantajoso para os sistemas de saúde adotar ações de cunho preventivo e de promoção da vida saudável. O envelhecimento das populações e as mudanças em seus hábitos de vida são dois elementos que têm contribuído para conformar o comportamento do setor; o envelhecimento tem também dado um caráter específico às necessidades da clientela. Por fim, hábitos de automedicação têm se disseminado, a despeito de campanhas públicas que desencorajam esse tipo de prática.

Da forma como atualmente está organizada, a atividade de saúde suplementar é um sistema baseado em shifting costs (certos usuários pagam a conta de outros), na formação de grandes grupos de clientes para diluição de risco, em que empresas e outras instituições agrupam usuários e operadoras fazem a mediação entre estes e os fornecedores de serviços. 

Os serviços são remunerados conforme incidência e custos. Os valores de remuneração têm uma base fixa, periodicamente revisada mediante negociações que consideram o risco, a incidência de uso e os valores praticados. Estas negociações se dão entre operadora e fornecedor e entre operadora e empresa ou instituição cliente do plano de saúde, à qual está associado o cliente final. 

Nesse tipo de arranjo os principais agentes têm seus ganhos, volume de operação e incentivos determinados pela maior incidência de doenças e pela capacidade de repassar seus gastos com materiais e serviços. O desempenho e taxa de sobregeração de recursos deles e das operadoras depende do equilíbrio entre volume de gastos, situação e disposição das entidades a que se vincula o usuário (na maioria das vezes relação de emprego ou extensão disso) e da condição básica do cliente final, de estar ou não integrado ao processo.  

 

O processo é circular e os efeitos são cumulativos. A retração econômica, ao aumentar a massa de desempregados, gera o efeito de alijar do sistema o cliente final, a menos que se disponha a adquirir um plano individual (o que é raro porque o risco eleva o valor e neste tipo a operadora tem menos liberdade para aumentar preços); e torna maior a inclinação das empresas clientes das operadoras a racionalizar gastos, aí incluídos os relacionados com saúde. 

Com a redução da massa de atendidos, aumentam custos unitários de atendimento; uma vez que os itens que integram os serviços médicos têm aumentado de preço, veem-se dificultadas as condições de negociação entre operadoras e fornecedores; as pessoas que saem do sistema passam a recorrer ao sistema público de saúde ou a pagar avulsamente por atendimento médico sob severa restrição do orçamento familiar.   

 

Questão de grau. Sob tais condições, ressentem-se especialmente as empresas do setor na medida em que suas receitas dependam em maior grau de que os clientes finais estejam empregados; que dependam de boa situação financeira das empresas clientes, empregadoras contratantes dos serviços de saúde; que dependam de grande massa de clientes para operar com custo viável; cujo domínio da cadeia produtiva seja pequeno, dado que a ele se associam dificuldades em ter controle efetivo de seus custos; que não estejam organizadas internamente para oferecer nível adequado de qualidade; cujos controles internos se ressintam de organização, amplitude e grau de confiabilidade; cuja maturidade de governança seja baixa. É o caso também de organizações cujos processos internos estejam mal estruturados ou que sejam incapazes de gerar ou obter os recursos necessários para promover, em pouco tempo, essa estruturação. 

 

Aquém dos muros, além deles também. As soluções que se colocam para o setor têm a ver com providências amplas, relacionadas com as métricas do sistema, a lógica de relacionamento entre os agentes e o estabelecimento de critérios voltados para maior bem-estar e saúde a longo prazo para os clientes finais. Ações assim poderão ser conduzidas por entidades fora do mercado, capazes de promover reformulações desse tipo, dotadas do poder necessário e da capacidade de decidir sobre a alocação de grandes volumes de recursos na criação de novos modelos, na implementação de novas formas de credenciamento e na melhoria de serviços públicos, campo que se comunica com o mercado de saúde suplementar por meio de vasos comunicantes.

Antes que alguma reforma ampla aconteça, os agentes terão espaço significativo de manobra na promoção de melhorias na gestão da eficiência, na qualidade de seus controles, no aprimoramento da capacidade de avaliar outros negócios cuja aquisição lhes dê maior domínio da cadeia produtiva e na melhoria da capacidade de negociar com parceiros, sob condições de tensão e indeterminação. Uma vez que arrumar a casa e se preparar para o futuro são coisas que devem guardar equilíbrio e consistência no tempo, será preciso atentar para a coerência e a complementaridade entre elas. Do contrário, os ajustes que a organização promover poderão comprometer seu futuro.

 

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Este artigo é uma versão condensada de uma parte do E-book Uma Saúde a Repensar: dinâmica competitiva e espaços a ocupar no setor de saúde suplementar.

 

O material foi escrito por mim recentemente e reúne textos sobre posicionamento estratégico, tendências e desafios do setor. 

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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador  e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.

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