Uma das obras mais comentadas da história é A Jangada da Medusa, uma pintura a óleo feita nos anos 1818 e 1819 pelo pintor francês Théodore Géricault.

O quadro está exposto no Museu do Louvre e reflete a história real da fragata "Medusa", que partiu da França em 1816 em direção ao Senegal. Era uma das embarcações mais modernas da época e o objetivo da viagem era tomar posse da colônia do Senegal, que havia passado para o domínio francês.

Deu tudo errado. A combinação de um capitão arrogante, oficiais rebeldes e frequentes desentendimentos resultou em desastre em 2 de julho, na região das Ilhas Canárias, quando o barco encalhou.

A evacuação do navio e aquilo que se seguiu depois foram coisas emblemáticas.

Você já viu esse filme antes. Na hora de abandonar o barco, o ilustre governador nomeado para ocupar seu posto na África se juntou a parte dos oficiais e ocupou seis salva-vidas, deixando 147 tripulantes sem lugar. Estes foram alocados em uma jangada precária feitas com tábuas, cordas e pedaços do mastro.

Em certo momento o cabo que dava um mínimo de segurança ao conjunto se soltou, e a partir de então seus ocupantes enfrentaram duas semanas infernais em mar tempestuoso, com mortes e atos de canibalismo.

Os fatos reais em que o trabalho de Géricault se inspirou provocaram grande polêmica na época. O realismo surpreendente do quadro deu margem a inúmeras interpretações e analogias sobre nosso papel em um mundo de dificuldades e incertezas.

Ao contrário dos quadros que mostravam cenas marítimas de então (nos quais o mar aparecia imponente e superando largamente em força e grandeza a presença humana), na Jangada da Medusa ele assume pouca importância. O destaque está na própria jangada e nas expressões das pessoas, a simbolizar diferentes posturas e visões diante do desafio que estavam enfrentando.

Em vista disso, o quadro já foi exaustivamente analisado e interpretado. Gerou muitas metáforas e outras novas são frequentemente criadas pela imaginação de quem o aprecia. Vê-lo esses dias me fez pensar que mares revoltos são uma coisa que nós, brasileiros, conhecemos bem. E que, embora ocupemos diferentes jangadas, a maior parte delas se sustenta com muita dificuldade enquanto não poucas sucumbem. É parecido com isto o momento que vivem nossas empresas.

 

 

Cadê a empresa que estava aqui? Virou estatística.

Não são poucas as empresas à sua volta que estão quebrando. Muitas delas simplesmente não vão conseguir resolver os problemas que têm.

Razões não faltam. Entre os possíveis motivos para uma empresa quebrar, alguns trazem consigo um lado até saudável para o desenvolvimento das economias, e que recebeu o nome de "destruição criadora". Pense naquelas inovações que desequilibraram a concorrência; foi o caso de empresas como a Kodak, Motorola, Blockbuster, Blackberry, Nokia e Virgin Megastores, que ficaram para trás. O caso da maioria dos pedidos de falência recentes no Brasil, porém, é algo bem diferente disso.

 

Do que estamos falando?

Citar exemplos não é difícil. Existe algo em comum entre organizações como a fabricante de geladeiras Mabe (responsável pelas marcas Dako e Continental), Leader e Luigi Bertolli (varejistas), Proema e Arteb (peças automotivas), BMart (loja de brinquedos), Tonon (bioenergia), Eisa (estaleiro). São organizações que, no Brasil, foram tidas como sólidas, mas quebraram.

Por outro lado, são muitos os outros que sofrem em silêncio.

Um levantamento da consultoria Neoway, com base em dados das juntas comerciais e da Receita Federal,  indica que  em 1,8 milhão o número de empresas que fecharam as portas em 2015 no Brasil.  Este número é maior que o triplo da quantidade de fechamentos registrados no ano anterior. Enquanto isso, observa-se crescimento significativo do número de devedores.

As contas para pagar vão se empilhando. Dados da Serasa Experian  referentes a abril de 2016 dão conta de que o número de empresas inadimplentes no Brasil bateu um recorde. São 4,4 milhões de companhias com dívidas em atraso, o que corresponde a 55% das organizações em operação. Quase a metade (48,5%) das empresas inadimplentes possui quatro ou mais dívidas.

O contexto é conhecido. Dados do IBGE indicam que a produção industrial do primeiro trimestre de 2016 ficou 11,7% abaixo da observada no mesmo período do ano anterior, marcando o pior primeiro trimestre da indústria desde 2009. Dados acumulados dos últimos 12 meses mostram uma queda de 9,7%.

Temos recuado. Os números indicam que a indústria se situa mais de 20% abaixo do pico da série de dados de produção, que se deu em junho de 2013. A tendência da trajetória é de declínio, especialmente percebido nos ramos de bens de capital e de consumo duráveis.

O clima de incerteza influencia decisões de investimento e de consumo das famílias.

O número de empresas que solicitaram recuperação judicial no primeiro trimestre de 2016 foi 409. Dados da Serasa Experian mostram que esta quantidade foi maior do que a do mesmo período de anos anteriores, e 114,1% superior ao número do primeiro trimestre de 2015.

O quadro recessivo afeta o ritmo dos negócios e a capacidade de gerar caixa das empresas, em um momento em que enfrentam taxas elevadas de juros e de câmbio, salários que crescem acima da produtividade em alguns segmentos e elevação de outros custos operacionais.

 

Farinha pouca, meu pirão primeiro

Condições como estas preocupam bancos e empresas seguradoras de crédito (as quais cobrem inadimplências de empresas que não pagaram a seus fornecedores). Estas últimas tiveram um volume de cotações de seguros que só no primeiro trimestre de 2016 superou em 50% o volume de janeiro a dezembro de 2015. Segmentos como os de construção, aparelhos eletroeletrônicos, téxteis, de calçados e siderurgia costumam apresentar maiores riscos, refletindo as flutuações da economia e dos patamares de consumo.

Diante disto, bancos aumentaram as provisões que fazem contra perdas. O Bradesco a situou em R$ 5,4 bilhões no primeiro trimestre de 2016, um volume 52% maior do que o do mesmo período do ano anterior. O Santander, por sua vez, fez provisões de R$ 2,4 bilhões, com um crescimento de 14,8% no mesmo período.

Para controlar o nível de calote de suas carteiras de empréstimos, os bancos aumentam os esforços destinados à venda de créditos duvidosos, elevam as taxas de juros que cobram, tornam mais restritivas as condições para conceder empréstimos e concentram esforços no estímulo a linhas de financiamento cujo risco é menor. Sob tais condições, empresas que já apresentavam problemas encontram ainda mais dificuldades para obter e refinanciar seus créditos.

 

Em busca da competência perdida

Aquilo que é problema para alguns é oportunidade para outros. O efeito cumulativo das dificuldades se traduz no aumento da demanda por serviços de reestruturação. Além de consultorias especializadas e profissionais que resolveram se especializar no assunto, há hoje fundos criados para aproveitar oportunidades de recuperar empresas cujo potencial seja bom, mas estejam sendo prejudicadas por restrições financeiras de curto prazo, administráveis.

 

O caminho judicial: fácil de entrar, difícil de sair

Muitas empresas entram em processo de recuperação judicial e não conseguem sair deles. Consultados, os administradores das empresas costumam explicar que  situação de retração econômica tem acelerado a quebra de empresas que se encontravam em recuperação judicial.

A recuperação judicial muitas vezes é um atalho para a falência.

Com dificuldades de acesso a crédito, juros altos, confiança reduzida, crescimento da taxa cambial e demanda retraída, são mesmo maiores as dificuldades em aprovar planos de recuperação; quando ocorre de serem aprovados, fica difícil executar. Sem condições de atender as exigências da legislação, as empresas entram em falência.  O processo na verdade é perverso, porque em situação de retração da demanda, fica ainda mais difícil uma empresa em processo de recuperação competir com outras que estejam saudáveis.

 

 

Bem, a culpa não é só do mar revolto

É inegável a importância da retração econômica e as explicações para os problemas das empresas têm base em fatos, mas elas não explicam tudo. Fica faltando considerar coisas como o tempo em que as ações corretivas foram adotadas, a qualidade dos diagnósticos feitos, a disposição dos agentes envolvidos em buscar soluções de boa qualidade, sua capacidade de atuar em benefício do conjunto de agentes envolvidos, a qualidade das negociações e acordos, o conhecimento do arcabouço jurídico referente ao processo de recuperação e a competência para adotar as providências necessárias, de maneira que as mudanças na gestão da empresa aconteçam mesmo. 

 

OK, então o que dá para fazer?

Parece razoável se esforçar no sentido de considerar a margem de manobra que realmente se tem e agir com otimismo prudente na direção dos melhores acordos possíveis. Para quem está em busca de soluções, algumas questões que se colocam são:

 

  1. As pessoas que tomam decisões na organização sabem lidar com o risco ou têm reagido passivamente a ele?
  2. A postura dos tomadores de decisão tem sido realista ou eles aguardam que uma solução repentina venha salvá-los da situação?
  3. As providências de correção necessárias estão sendo tomadas em tempo ou só serão adotadas quando for tarde demais?
  4. A empresa conta com profissionais adequados para orientar as providências de recuperação?
  5. As pessoas que estão a administrar os problemas que se agravaram serão capazes de formular uma boa estratégia de reversão da situação?
  6. Os gestores percebem com clareza os elementos em que podem trabalhar, diferenciando-os dos que não estão ao seu alcance?
  7. O estoque de conhecimento, experiência e capacidade de formulação que são necessários para a recuperação estão presentes internamente na própria organização, ou terão de ser buscados fora dela? Nesse caso, onde poderão ser encontrados?
  8. A empresa possui as informações necessárias para entender a natureza de seus problemas e adotar as providências necessárias? Se não as possui no momento, sabe como obtê-las?
  9. Os tomadores de decisão avaliaram as vantagens que poderiam ser geradas por bons acordos com os demais envolvidos? Existe real disposição para fazer bons acordos, baseados em um projeto de futuro para a organização?
  10. Os envolvidos no processo estão sabendo criar condições de confiança para fazer as negociações necessárias? Os tomadores de decisão da empresa são sensíveis aos interesses dos demais envolvidos?
  11. Os gestores conhecem mesmo as alternativas ao seu alcance, o ambiente regulatório e a posição dos outros agentes que podem influenciar a recuperação? Eles sabem comparar as vantagens e as desvantagens de cada opção possível?
  12. Antes de recorrer à Justiça, a empresa está preparada para lançar mão de todos os recursos e providências ao seu alcance?

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Voltando ao quadro de Géricault: entre os vários detalhes inspiradores que a obra nos traz, é possível perceber alguns ocupantes da jangada tentando visualizar ou discutir possibilidades de salvação, enquanto os demais se encontram em desespero ou algo pior.

O pintor morreu precocemente, aos 32 anos. Sua obra influenciou artistas renomados como Delacroix, Turner, Courbet e Manet. Ao sintetizar o terror de uma situação desesperada, ele nos lembra da importância de voltar os olhos para a solução mesmo quando ela parece difícil, incerta ou ainda tem de ser construída.

É importante não fechar os olhos para coisas que na verdade estão dentro nossa zona de domínio.

Na situação real retratada pelo quadro, não sabemos se os náufragos otimistas foram os que realmente conseguiram se salvar. Mas certamente aqueles que se resignaram e desistiram antes da hora acabaram descartando possibilidades que poderiam ter feito a diferença.

Então, calibre seu olhar. Procure enxergar respostas. Quando elas não estiverem à vista, o jeito será trabalhar na construção delas.

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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.

 

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