O presente e futuro biotecnológico da indústria de cosméticos
Hoje eu trago um texto de Haury Silveira, publicado no site bioquimicabrasil.com, sobre o papel do bacharel em bioquímica e da biotecnologia aplicada ao crescente setor de cosméticos. Mais uma área onde o bioquímico já atua com maestria. Confere aí!
A natureza expressa sua perfeição através de três reinos materiais: o mineral, o vegetal e o animal. Atualmente, o homem entendeu que deve atuar em harmonia com os processos vitais e buscar nos três reinos os recursos necessários para a manutenção e aprimoramento da estética do seu corpo. A cosmética tem como proposta atuar nas estruturas externas do corpo humano (pele e cabelos), auxiliando o metabolismo para que possa prolongar a juventude, retardar o envelhecimento, promover a saúde, bem estar e beleza. A pele e os cabelos são formados principalmente por proteínas (colágeno, elastina, queratina), mucopolissacarídeos (sulfato de condroitina, ácido hialurônico), lipídeos, enzimas, sais minerais, vitamina e água. A aplicação tópica de itens que tenham identidade com a pele e cabelos baseia-se principalmente no fornecimento de precursores biológicos, catálise de reações vitais, sequestro de radicais livres, manutenção do teor de água, formação de filmes seletivos e protetores, restauração de estruturas danificadas, lubrificação adequada dos tecidos, condicionamento e brilho (cabelos).
Segundo dados da ABIHPEC (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos) a indústria brasileira de produtos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (HPPC) apresentou um crescimento médio próximo a 10% ao ano nos últimos 19 anos. Vários fatores têm contribuído para este crescimento (considerado excelente!), dentre os quais se destacam o acesso das classes C, D e E aos produtos do setor; a participação crescente da mulher brasileira no mercado de trabalho; a utilização de tecnologia de ponta e o consequente aumento da produtividade; lançamentos constantes de produtos atendendo cada vez mais às necessidades do mercado e o aumento da expectativa de vida, o que traz a necessidade de conservar uma impressão de juventude. Em relação ao mercado mundial de HPPC, conforme dados do Euromonitor de 2014 (figura 1), o Brasil ocupa a terceira posição em HPPC. Os dados apontam também que o país é o primeiro mercado em perfumaria e desodorantes; segundo em produtos para cabelos, masculinos, infantil, produtos para banho, depilatórios e proteção solar; terceiro em maquiagens e higiene oral; e o sexto em pele. No Brasil há 2.540 empresas atuando no setor, situando-se 80% delas na região sul e sudeste. Esse aumento se traduz em novas oportunidades no mercado (na indústria, em centros de pesquisa e desenvolvimento, marketing e vendas) e na necessidade de mão de obra qualificada para atender a essa demanda.
Figura 1. Posição do Brasil no mercado mundial de higiene pessoal. Dados de 2015.
Esse contínuo crescimento vem associado com o surgimento de tendências de mercado cada vez mais atrativas ao consumidor. Atualmente existem duas delas que vêm se mostrando bastante importantes na indústria de cuidados pessoais.
1º - Os produtos multifuncionais estão em alta: Com estilos de vida extremamente agitados, os consumidores tendem a simplificar suas rotinas diárias de beleza, dada a “escassez” de tempo. Por isso, os produtos multifuncionais estão crescendo em popularidade, já que oferecem diversos benefícios de uma só vez, tais como: anti-idade, limpeza, hidratação, antioxidante, proteção UV, etc. Como exemplo, o mercado brasileiro acompanhou a popularização dos BB creams, que reúnem as funções de base, hidratante e protetor solar. Apesar de terem sido inicialmente desenvolvidos para o segmento de skin care, hoje já existem multifuncionais para as mais variadas categorias, incluindo corpo, unhas e cabelo, que podem agregar até 15 funções em um só produto.
2º - Química verde, eficiente e moderada: Os consumidores estão se voltando aos produtos fabricados por marcas mais ecológicas, sustentáveis, éticas e socialmente responsáveis. O conceito de química verde pode ser relacionado com uma série de reduções como do uso de matérias não renováveis, de etapas de processo, redução de custos, energia, água e despejos. Essa tendência também refletiu num aumento no consumo de ingredientes naturais. Entretanto, os produtos fabricados com ingredientes naturais são mais propensos aos ataques microbianos e também aos problemas de compatibilidade com outros ingredientes, nas mais diversas formulações.
No centro desta discussão, o uso da Biotecnologia tem surgido como uma excelente alternativa para inovação, desenvolvimento de produtos mais eficientes e criação de “tecnologias verdes”. A utilização de técnicas biotecnológicas para o aperfeiçoamento de processos já existentes e/ou para a criação de novos conceitos e produtos tem emergido como uma alternativa à manufatura tradicional de cosméticos. Enzimas ativas, tecnologias de DNA recombinante, biopolímeros funcionais e produtos de origem fermentativa cada vez mais são utilizados como insumos ativos neste mercado. A demanda por esse tipo de tecnologia deve aumentar para suprir as novas tendêndias e o consumidor mais exigente.
Um exemplo clássico é a obtenção do ácido hialurônico. Este glicosoaminoglicano aniônico não sulfatado é um biopolímero linear de alta massa molecular, muito utilizado como ingrediente ativo em produtos anti-aging. Ele é um componente encontrado em nossa pele, e é um dos principais responsáveis pela característica lisa e elástica desta quando jovem. Com o passar do tempo, a concentração desta substância na pele diminui, contribuindo para a desidratação e para o aparecimento das indesejadas rugas. Tradicionalmente, esta substância tem sido extraída de tecidos animais como o fluido sinovial e as cartilagens. Entretanto, processos fermentativos envolvendo bactérias dos gêneros Streptococcus e Bacillus têm surgido como excelentes alternativas para a obtenção do ácido hialurônico, pois em geral estes processos apresentam maiores rendimentos, custos reduzidos e eliminam a necessidade de uma fonte de insumos de origem animal.
Biologia molecular, técnicas de cultura celular, triagem de células e extração de proteínas proporcionam recursos para estudos com fatores de crescimento humano (HGFs) para uso em cosméticos. Na pele, as células envelhecidas ou lesionadas sob estímulo dos HGFs absorvem nutrientes, sofrem angiogênese, produzem colágeno e outros mecanismos relacionados com a regeneração e reparação. Em 2001 dois estudos duplo-cegos independentes foram apresentados à Sociedade de Dermatologia Investigativa para que fossem testados cremes tópicos contendo HGFs naturais ou obtidos por bioengenharia. Foram constatados resultados visualmente melhores na superfície facial quando comparados com a toxina botulínica (Botox). Além disso, cada estudo mostrou aumento significativo na produção de colágeno, ácido hialurônico, elastina, fibroblastos e espessamento da epiderme. Os resultados não poderiam ser mais satisfatórios no âmbito da biotecnologia de cosméticos.
A maioria dos produtos para limpeza de pele e cuidados para os cabelos, sabonetes líquidos, xampus e condicionadores, contém ingredientes de tratamento que permanecem em pouca quantidade no cabelo e na pele após enxaguar. Dessa forma a nanotecnologia, mais uma vertente da biotecnologia, torna-se estratégia para desenvolvimento de cosméticos. Os ativos nanotecnológicos podem ser incorporados em cremes, séruns, loções, géis e muitas outras formas cosméticas e apresentam performance superior quando comparados com ativos convencionais. Isso acontece porque quanto menor o ativo maior a permeação dele nas camadas do cabelo da pele, consequentemente, maior poder e área de ação. Também, esses ativos - por terem uma estrutura “encapsulada” - tem uma liberação no cabelo e na pele controlada e prolongada (Figura 2). Altas dosagens de ingredientes de alta eficácia, por exemplo, podem ser distribuídas ao longo e 8 a 12 horas, e assim maximizar a quantidade entregue, evitando picos de concentração que causem reações.
Figura 2. Nanotecnologia para cosméticos. Fonte: Nanovetores.
No período entre 1994 e 2005, a L'Oreal (França) foi classificada como a quinta empresa no mundo com base no número de patentes relacionadas à nanotecnologia depositadas. Outras grandes empresas já utilizam a técnica de nanoencapsulamento em seus produtos, como, por exemplo, Avon, J&J, Lancôme e Givenchy. No Brasil, por exemplo, a empresa O Boticário apresenta uma linha de tratamento antienvelhecimento composta por diferentes produtos utilizando a nanotecnologia.
Há ainda grande atenção de fabricantes de cosméticos na busca de novos princípios ativos encontrados em extratos vegetais que atuam de forma intensa em muitos produtos. Tal sucesso também se deve ao aumento da procura pelo “natural” por parte dos consumidores, tendo assim cada vez mais disponível no mercado uma gama de moléculas naturais que apresentam eficácia incontestável como biofenóis, carotenóides, alcalóides, terpenos e sitosteróis, que estão entre os mais conhecidos. A utilização de frutas exóticas e sementes da Amazônia, como acerola, açaí, cupuaçu, camu-camu e extratos de andiroba e buriti, são grandes apelos desse mercado e por isso o Brasil se mantém como o principal fornecedor de matéria-prima. A L'Oréal, através de pesquisa avançada, patenteou o Pró-Xylane, um ativo antiidade obtido através de matéria-prima vegetal renovável (xilose da madeira de faia). O ativo age na matriz extra-celular principalmente induzindo aumento na síntese de receptores CD 44 (gliocosaminoglicanos). Esses receptores permitem que o ácido hialurônico se fixe nas células, garantindo a hidratação eficaz da derme e da epiderme, bem como a regulação, adesão e coesão dos queratinócitos. A atividade metabólica da célula é intensificada e o número de células faciais também.
De origem natural também destacam-se as argilas e minerais usados na indústria cosmética. Caulim, bentonitas, silicato de alumínio e magnésio são vastamente utilizadas na indústria e conferem maciez, granulometria, reologia adequada, capacidade de sorção e troca iônica às formulações. A bentonita é uma argila composta essencialmente de argilominerais do grupo esmectitas usadas em pós, batons, blushes, cremes, emulsões, géis, pastas, entre outros. É interessante a pesquisa por combinações de minerais a fim de encontrar cada vez mais as propriedades desejadas em produtos cosméticos.
Assim, quando pensamos em “cosméticos verdes” ou “cosméticos científicos”, nanotecnologia, biocatalisadores, biomoléculas e demais inovações, não é difícil imaginar que esses termos fornecem subsídios irrefutáveis para a tendência do uso de técnicas biotecnológicas por parte da indústria cosmética. Contudo, nem sempre isso é possível e, em muitos casos, os processos sintéticos convencionais ainda apresentam-se como a melhor alternativa. Evidente que todas as vantagens apresentadas pelo uso da biotecnologia na obtenção de cosméticos possuem um preço: alto know-how tecnológico. Investimentos em P&D de produtos e processos constituem aspectos cruciais neste mercado, além da necessidade da formação de recursos humanos para atuar nestes processos. E isso pode e deve ser explorado pela indústria de cosméticos brasileira. A idéia de que “ciência vende” começa a ser percebida pela indústria nacional, o conceito do uso racional dos recursos naturais e produtos de maior qualidade agregada já faz parte do perfil dos consumidores de cosméticos no Brasil. A perspectiva é que esse mercado continue crescendo mesmo com as incertezas do país para esse ano. A inovação continuará sendo uma grande força para manter o negócio aquecido, seja por meio de produtos e tecnologias (como a nanotecnologia e novidades em ingredientes ou expansão de portfólios de produtos), como pelos produtos com múltiplos benefícios (por exemplo: gel pós-barba com protetor solar).
Cabe a indústria o contínuo aperfeiçoamento de seus processos e produtos no sentido de conquistar cada vez mais uma clientela consciente e exigente. E um dos principais caminhos para isso passa necessariamente pelo investimento em Pesquisa e Desenvolvimento, que pode ser alcançado pela parceria empresa/universidade, em centros de pesquisa de empresas ou agências do estado.
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