Este é um relato verídico, ocorrido em meu consultório há 15 anos atrás. Os nomes obviamente são substituídos para proteção da identidade.

Era uma tarde comum, agenda com poucos pacientes, quando entra um casal de meia idade, claros, e uma menininha negra brincando com uma flor.

O nome da paciente era Celina, casada, com 55 anos, entrou em minha sala acompanhada da irmã, enquanto seu marido ficou na recepção com a criança, Fábia.

Fábia era uma criança negra, muito sorridente, ativa e carinhosa com todos. Pensei num momento, deve ser filha adotiva.

Celina foi encaminhada por um mastologista, pois havia tido um câncer de mama, já tinha sido operada, 24 meses antes, e agora foi pedir uma avaliação para uma possível reconstrução. A consulta transcorreu de forma padrão, até que Celina me relatou que seis meses antes do tumor aparecer e crescer muito rápido, ela tinha feito um check-up em um renomado laboratório da cidade. E a irmã nesse momento começou a chorar.

Intervi, perguntando se tudo estava bem. Então, Celina interviu e falou:

- Dra, no dia do check-up, meu marido ia me levar, mas estava cansado e pediu ao nosso filho Fábio que me levasse. Fiz os exames e na saída sofremos um sequestro relâmpago. Rodaram na cidade por horas conosco, retiraram o que puderam de dinheiro, eu e meu filho ficamos no banco de trás e então resolveram nos largar em uma estrada. Pediram a pochet dele, e ele só falou "deixa meu passaporte porque..." e deram um tiro a queima-roupa na testa dele, era meu único filho, estava com 18 anos, feliz porque tinha recebido o passaporte, ia estudar fora. Nasceu prematuro e minha irmã e eu fazíamos rodízio para amamentá-lo; é por isso que ela se emociona.

Meu marido, industrial, não aguentou. Entrou em depressão, pois achava que ele deveria ter morrido e não nosso menino. Não ia mais à fábrica, muitos amigos ajudaram, para não falirmos. Também recusei reconstruir a mama de imediato, porque nada mais fazia muito sentido para mim.

Eu já não sabia se chorava, se consolava a acompanhante ou se continuava. Estava difícil não me envolver em compaixão com aquelas mulheres. Respirei fundo e falei:

-Mas, e os exames do check-up?

-Ah, respondeu Celina, depois foram buscar a pedido do mastologista, datavam de menos de 6 meses, todos normais, inclusive a mamografia digital ampliada.

Perguntei:

- Algum caso de câncer de mama na família?

Resposta:

- Não que saibamos.

Então era óbvio o componente emocional no gatilho para desencadear a doença e de forma tão agressiva.

Falei:

-Bom, Celina, e como se sente agora? Entendo sua dor, mas, como se sente para uma cirurgia que é de médio a grande porte, no seu caso?

O método indicado envolvia um retalho músculo-cutâneo do reto abdominal, com certa complexidade, e o acabamento no abdome como de uma plástica estética abdominal, ao mesmo tempo.

Respondeu:

-Se a Dra acha que eu tenho condições de fazer, eu gostaria muito.

Minha alma estava abalada, quanta dor, tamanha perda, tão pouco tempo, que força de viver!

Pedi os exames e falei:

-No seu retorno, após conversar com seu mastologista e ver seus exames, vou explicar melhor a cirurgia e planejamos a data.

Neste momento, a menininha abre a porta do consultória e entra gritando , "mamãe esta flor é você", sorri, e a tia falou:

-A  Fábia é nossa, é a filha da Celina.

Eu falei:

-Nossa, que bom que ela tomou a decisão de adotar uma criança! Então Celina sorriu e falou:

- Eu não adotei não, Dra.

-Não?,perguntei.

-Não, ela respondeu. Depois de algumas semanas que eu operei, um dia tocou a campainha da minha casa e eu mesma fui atender. Então uma mocinha franzina, com uma pequena criança no colo, disse: ' olha essa menina é do seu filho, mas nem ele sabia, não posso criá-la e sei o que aconteceu com o Fábio, então decidi que ela é de vocês'

Ela me entregou a bebê nos braços e disse: ' eu não voltarei, trouxe uma parte do Fábio para vocês... '

E a menina passava a flor no rosto da Celina e falava: 'mamãe'.

Foi feito DNA. Acabou a postura médica, me derramei em lágrimas. Acho que foi um dos dias que vi a mão de Deus de forma explícita.

Faz parte da minha história também.