Controller | Gerente de Planejamento Financeiro (em busca de recolocação)

 

Algumas expressões e ideias, de tão usadas, já se desgastaram. A noção de visão sistêmica, global ou totalizante é uma delas. É possível que estudar um caso concreto no qual sua presença é decisiva ajude a resgatar o conceito, mesmo porque nunca perdeu a importância. Sua presença ou ausência fazem diferença, por exemplo, na área da saúde.

Controller | Gerente de Planejamento Financeiro (em busca de recolocaçãoAlgumas expressões e ideias, de tão usadas, já se desgastaram. A noção de visão sistêmica, global ou totalizante é uma delas. É possível que estudar um caso concreto no qual sua presença é decisiva ajude a resgatar o conceito, mesmo porque nunca perdeu a importância. Sua presença ou ausência fazem diferença, por exemplo, na área da 

 

 

É um caso em que as esferas privada e pública têm se misturado muito mal. Em muitos países o serviço de saúde passa por uma crise na qual a assistência a milhões de pessoas se vê prejudicada pela elevação de custos, pela incapacidade dos usuários e fazer frente a eles e pela dificuldade em financiar os gastos tanto públicos quanto particulares. 

A competição que hoje se dá entre planos de saúde, redes de serviços, médicos e unidades hospitalares envolve esforços que, se bem coordenados, poderiam ser mais bem dirigidos para as atividades de diagnóstico, tratamento e prevenção. Estabelecer e administrar padrões de qualidade e eficiência para o conjunto do mercado poderia ser benéfico para os agentes que o compõem, mas isso requer certa autoridade que está presente mais naqueles que elaboram políticas oficiais do que em operadoras, hospitais e médicos. 

Modelo enfermo. As dificuldades da organização atual do setor têm a ver, entre outros fatores, com:

- tratamento dado à causa raiz: insuficiência e descontinuidade de cuidados individuais com a saúde, não acompanhada ao longo do tempo, a provocar intensificação das demandas por serviços e materiais

- subordinação contratual: reduzido âmbito de escolha dos clientes finais, sujeitos a relações contratuais que não dominam e sobre as quais não interferem

- restrições orçamentárias: propensão à redução de custos das empresas contratantes dos clientes finais, a determinar diminuição da extensão e do tipo dos benefícios 

- custo intrínseco da mediação: custo burocrático da estrutura de mediação contida na ação da operadora, eventualmente agravada por elementos como insuficiente maturidade da gestão, baixa estruturação dos processos ou despreparo para gestão da eficiência

- distribuição da carga: sistema de shift cost em que o risco compartilhado implica sobrecarga para um grupo de clientes, reduzindo o custo/benefício deles de participar do sistema

- interesses contraditórios: sistema incongruente de recompensa para os agentes gerando a motivações divergentes em que maiores gastos para o conjunto implicam maior remuneração para o agente; ausência de motivadores para reduzir a necessidade dos serviços médicos na origem; fragilidade da qualidade dos serviços como critério de determinação do fornecimento

- domínio da cadeia produtiva: exterioridade dos responsáveis pela decisão determinando baixa força dos vínculos (unidades de operação, médicos e fornecedores a operar com independência em relação às operadoras), reforçando desalinhamento de interesses e dificuldades na aceitação de condições de fornecimento e absorção de custos pelas operadoras

- restrições conjunturais: a condição do cliente final, eventualmente desempregado e desassistido, isto é, deixando de participar do sistema e com isso inibindo receitas

- incidência de imposições oficiais: exigências regulatórias crescentes, a determinar condições de fornecimento dos serviços não necessariamente vantajosas para as operadoras 

Cada um por si: até quando? Para manter posição competitiva suficientemente sólida, um player qualquer terá de gerar valor reconhecidamente superior ao que é dado pelo usuário em troca dos serviços, por pessoas capazes e interessadas no valor assim gerado. Isso tem como condições necessárias manter a efetividade das barreiras à entrada de novos concorrentes ou criar outras igualmente efetivas; fazer frente a modelos emergentes capazes de resolver melhor os conflitos inerentes à organização e à condução da atividade; dispor do volume de investimentos que seria necessário para reduzir a sujeição ao poder de barganha dos fornecedores; saber dirigir os recursos necessários às reformas que propiciariam melhor governança, controles e gestão geral da atividade. 

Em outras palavras, entre os desafios com que terá de lidar uma empresa do segmento estão o da escalabilidade do modelo de expansão e sua capacidade de se expandir mantendo nível aceitável de qualidade e padronização de processos; o do grau de capitalização, acesso a capital e capacidade de autogeração; o de ter e manter grau de profissionalização dos quadros, controles e processos que seja com as exigências do processo competitivo; e o domínio da cadeia produtiva naquilo que tem de mais concreto: a capacidade de governar a relação (direta ou indireta) com clientes e fornecedores de serviços médicos, materiais e outras fontes de gastos.

O conjunto deve ser visto como um sistema. O caminho de solução parece residir na aplicação de melhores métricas para o conjunto, em que o valor dos serviços seja medido pelos resultados sobre a qualidade geral de vida e saúde do paciente; pela administração de padrões de qualidade diferenciados por região, que abranjam segmentos do mercado e funcionem como limites à operação dos agentes; pela capacidade de se adaptar às necessidades locais de grupos de clientes da região a custo compatível.

O valor do dinheiro no tempo, e o próprio tempo. Sob condições favoráveis, desenvolver um modelo ajustado à mudança de cenário, prover as equipes de capacitação, desenvolver controles, relações de governança interna e processos estruturados são atividades que demandam certa disposição e tempo. Players dotados de menor maturidade organizacional poderão ser solapados por um mix de clientes diferente do desejável (com seus desdobramentos sobre custo, restrições à operação e risco), insuficiência do poder de compra, aumento do número de pessoas que abandonam o sistema e advento de modelos mais ágeis a figurar como ameaça, sem contar os efeitos diretos da falta de sistemas e informações para a tomada de decisão.

Absorver para dominar e evitar custos de transação. A competição nesta indústria depende da existência de poder praticar um modelo escalável e desejavelmente baseado em alta padronização. 

Um dos problemas é o poder de barganha dos fornecedores de serviços, exames e materiais, o controle possível de seus custos e a forma de lidar com eles considerando que têm seus próprios interesses. Verticalizar é uma forma prática de suprimir conflitos e aumentar o poder de mercado, mas em muitos casos pode demandar recursos que os players não são capazes de gerar internamente. 

A principal barreira à entrada muitas vezes observada (delimitação geográfica e social do nicho ocupado, demarcação pela renda combinada com espaço geográfico) é essencialmente limitante para um ramo em que a expansão depende de modelos que se possa reproduzir com facilidade. Em resumo, ter se amoldado a condições locais pode dificultar a criação de um modelo que facilite a ocupação de outros mercados; desta maneira, os esforços de verticalização mediante fusão, criação ou aquisição de unidades produtoras de serviços médicos estará limitada pelo tamanho do território já ocupado pelo player.

Competir com base em custo não é para qualquer um. Competição baseada em custo é um problema quando as condições de demanda se alteram intensamente. Ter se habituado a operar com margens estreitas pode não ser suficiente, se não está presente a capacidade de se organizar para operar de maneira compatível com a nova situação. Sob tais condições, desorganização interna, competências cruciais pouco desenvolvidas e deficiências de qualidade geral dos empreendimentos deixam de ser ocultadas pelas condições favoráveis de mercado antes verificadas.

 

O ator a mais que sempre esteve lá

As forças dependem de saber o que fazer com elas. Os mais conhecidos modelos de avaliação da posição estratégica de organizações (SWOT, modelo das cinco forças de Michael Porter, etc.) se baseiam na identificação e classificação de fatores em categorias de análise, sejam eles forças competitivas (poder de negociação de clientes e fornecedores, rivalidade dos players já operantes, poder de concorrentes potenciais) ou variáveis do ambiente interno ou externo à empresa (elementos positivos ou negativos, internos ou externos). 

Alguns desafios desses modelos residem na suficiência ou não das categorias de análise (por exemplo, nem sempre se dá a devida importância à presença do Governo como comprador, financiador, emprestador, concorrente ou regulador), e na maneira pela qual lidam com a dinâmica dos mercados, isto é, como tratam as questões referentes aos movimentos do processo. 

As mais usadas ferramentas de análise de posição competitiva são uma versão simplificada do modelo de concorrência monopolista com ausência de Governo, em que prevalecem liberdade, ação individual, interesse egoísta, ausência de limites extramercado, desequilíbrios como coisa inerente ao processo; busca de hegemonia; jogo de soma zero (perde-ganha). 

Com o tempo, os modelos passaram a incorporar maior atenção ao poder regulador do Estado enquanto entidade situada acima dos agentes, dotada de poder regulatório mais influente do que o poder de barganha das empresas. Propostas e análises passaram a dar maior destaque a assuntos como os limites do sistema controlados pelo Governo via critérios e métricas de distribuição de valor; equilíbrio e sustentabilidade no tempo como indutores de decisões; preocupação com missão, objetivos e resultados a partir de uma visão de conjunto; e oportunidades de interagir com soma positiva (ganha-ganha).

Outra dificuldade estaria na maneira de tratar a questão da aprendizado pela experiência, nos casos em que ele é decisivo para determinar posição de superioridade. Identificação e enquadramento de elementos influentes são um ponto de partida para o entendimento dos rumos do mercado e da organização nas relações com os demais players, mas não deve constituir a forma acabada da análise. São o ponto de partida, e não o de chegada.

Abandonando vícios e fortalecendo músculos 

Dentro do tempo que se tem. A composição de forças que temos conhecido não deverá se alterar substancialmente enquanto as condições econômicas não se modificarem, enquanto a natureza das relações entre os agentes permanecer a mesma e enquanto as métricas e indutores de ação estiverem voltados para resultados parciais sob condições de ganha-perde. Para o conjunto, isto implica conviver com baixa eficiência e outputs insuficientes para o conjunto do sistema enquanto as condições para promover mudanças nas regras do jogo estiverem limitadas por falta de condições políticas e capacidade de autorregulação. Uma vez que tais condições não são estáticas, é de se esperar certa continuidade na degradação das condições de operação, piora nos resultados e o efeito retroalimentador de má saúde a provocar demandas crescentes em um sistema incapaz de supri-las a custo viável. 

Melhorias de gestão de alguns agentes em particular ou de outros a que se vinculam poderão ter algum efeito sobre a eficiência operacional e promover melhor situação para os mais bem administrados, mas dificilmente isto alterará de maneira substancial as condições do conjunto. Movimentos de fusão, incorporação e aquisição têm campo propício sob condições como essas (e os ganhos proporcionados aos compradores de ativos produtivos associados a adquiri-los em período de retração) devem ser entendidos como uma confirmação da tendência geral, e não como um fator que possa vir a corrigir a situação do setor.

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O setor de saúde suplementar é um conjunto notável. Seu funcionamento tem sido marcado pela aversão sistemática dos agentes à absorção de custos (lançados quando possível sobre as costas de outros agentes ou dos clientes, aí incluídos os custos da ineficiência); e pela retroalimentação da geração de poder de mercado a aprofundar desigualdades. Nele, a saída representada por estabelecer limitantes conforme o poder que se tem é um expediente que tem se colocado acima da preocupação com gerar os melhores outputs possíveis. A operação do setor constitui um exemplo real de jogo de soma zero em que os conflitos entre agentes tendem a crescer em intensidade; como consequência, reduzem-se a adequação e a qualidade do efeito final produzido para os usuários. 

É razoável supor que planos de saúde, redes de agentes, clínicas e hospitais sejam entidades que vêm atuando ao longo das últimas décadas da maneira mais racional que lhes é possível. Apesar disso têm gerado no seu conjunto resultados insatisfatórios e o sistema não progride em termos de solidez e equilíbrio. É de se esperar a busca de um framework que seja capaz de contribuir ao menos para reduzir as ineficiências, os conflitos evitáveis e as tendências deletérias. Uma visão totalizante poderá não resolver todos os problemas do setor e não evitará que outras novas dificuldades surjam, mas poderá ajudar na construção das mudanças necessárias. 

Jogos do tipo ganha-ganha, isto é, de soma positiva, requerem visão de conjunto e capacidade de articulação que os agentes, considerados individualmente, nem sempre têm. Uma vez que o setor não se reformará sozinho, quando atingir certos limites deverá ser objeto de mudanças nas políticas públicas que alterarão o papel dos agentes, assim como as relações que mantêm entre si e com o Governo. 

Enquanto reformas estruturais não acontecem, tem-se tempo (e espaços a ocupar) para que os agentes mais competentes fortaleçam sua posição e atuem conforme seus interesses. Isto significa maximizar a eficiência, operar com um modelo viável de expansão e ocupar lacunas criadas por estratégias mal sucedidas e incompetência dos concorrentes. Mercados em si não são bons nem maus; eles funcionam como podem, dentro daquilo que lhes deixam fazer.

 

Livro grátis para download

Este artigo é uma versão adaptada de uma parte do E-book Uma Saúde a Repensar: dinâmica competitiva e espaços a ocupar no setor de saúde suplementar, escrito por mim recentemente e que reúne textos sobre posicionamento estratégico, tendências e desafios do setor. 

O arquivo contendo o texto integral do livro pode ser baixado gratuitamente nos links indicados a seguir. Para fazer o download não é necessário fornecer dados pessoais nem senha.

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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.

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