A competição pelo futuro, a camuflagem de fraquezas e o problema do ajuste excessivo
As expressões oil curse, doença holandesa e paradoxo da abundância designam distorções associadas à fartura de riquezas naturais, isto é, o efeito prejudicial sobre o desenvolvimento de certas competências, derivado da presença de condições favoráveis excepcionais. Na verdade não é a presença de riquezas em si que torna inevitáveis os problemas, e sim a acomodação que leva a tomar decisões com base em uma visão míope da realidade, a inibir o preparo necessário para enfrentar mudanças.
Na verdade, as forças que explicam a competitividade das empresas em um mercado também explicam suas fraquezas. A natureza, a combinação e o funcionamento das forças competitivas muitas vezes explicam a presença de vulnerabilidades porque aquilo que funciona como ponto forte sob certas condições pode se transformar em um empecilho ao crescimento em momento posterior.
Entender a dinâmica de um setor e as tendências pode ajudar a diferenciar as competências; e avaliar, entre aquelas que se fazem presentes, quais são as que determinarão a posição competitiva e quais outras, embora tenham sido úteis no passado, não contribuirão para que fique em melhor condição para competir.
Quando o retrovisor não é um bom guia. Certas condições favorecem o desequilíbrio do desenvolvimento dos processos internos, ao tornar possível que o avanço do negócio aconteça mesmo sem a presença de certas capacidades.
Quando se alteram as circunstâncias, os fatores que ajudaram a consolidar a posição da empresa assumem sinal invertido e deixam evidente o despreparo; transformam-se em obstáculos à mobilidade, isto é, em obstáculos à eventual ocupação de outro mercado porque a empresa deixou de desenvolver a capacidade de operar sob condições diferentes das conhecidas. Capacitações e flexibilidade que poderia ter desenvolvido e facilitariam a presença em outros nichos não se fazem presentes e exigirão esforço redobrado para que ela se mantenha competindo.
Do micro ao macro. É um fenômeno semelhante ao que acontece com a economia de certas nações: sob condições naturais favoráveis, por proteção produzida artificialmente ou regramentos que conferem vantagem competitiva, deixam de se preparar para um momento posterior em que outras capacitações são necessárias.
No caso das empresas, é mais comum que deixem de aproveitar o tempo para se qualificar, capacitar colaboradores, desenvolver padrões aceitáveis de governança e se organizar internamente. Com o passar do tempo o gap se acentua, porque corrigir a situação depende justamente de pôr em ação as qualificações que não se tem.
Do macro ao intermediário. Em certas regiões (Louisiana, Níger, Venezuela, Iraque) em que a abundância de recursos naturais se associou a menores taxas de crescimento do que a que se tem em economias carentes desses mesmos recursos.
Quando políticas inibem o processo de industrialização, favorecem ineficiência, protegem interesses localizados em detrimento do conjunto e direcionam gastos para ações que não estimulam o crescimento, as organizações podem seguir uma trajetória de desequilíbrio, baseada em vantagens que não se sustentam e em detrimento da alocação de recursos em projetos estruturantes. Em certas regiões do Brasil, o mero aceno gerado ela expectativa de ganhos futuros no setor petrolífero produziu distorções nas contas públicas, no direcionamento de investimentos, no mercado de trabalho e na condições do segmento imobiliário. Em resumo, a acomodação gera despreparo.
Despreparo por overfitting
A inadaptação a novas condições deriva do ajuste excessivo às anteriores, em um processo marcado por inconsistência dinâmica, isto é, a posição de um momento não se revela adequada às exigências do momento seguinte, porque a organização não lidou como deveria com a dificuldade de reverter os efeitos de certos predicados ou com a ausência de outros. O exagero na adaptação a certa situação levou à dificuldade de se adaptar em um momento posterior.
Tão ajustado que deixou de ser bom. As áreas de estudos estatísticos, redes neurais e machine learning fazem uso de um termo que ajuda a entender certo tipo de fenômeno: überanpassung (ou overfitting, em inglês): o sobreajuste que se tem quando um modelo se mostra excessivamente ajustado a desvios; a despeito da alta precisão que venha a ter, fica prejudicada capacidade de predição.
Para resolver o problema é preciso rever a importância conferida aos parâmetros usados, mantendo no modelo somente as variáveis relevantes. Raciocinando analogamente, em se tratando de modelo de negócio teríamos de discernir entre aquelas variáveis que poderão determinar a sustentação da posição competitiva e as demais; incorporar elementos demais ao modelo pode ser contraproducente.
É preciso saber escolher o que deve ser mantido. Em face dos movimentos que ocorrem na arena competitiva, cabe a quem toma decisões se perguntar sobre a medida em que certas características, se desenvolvidas, restringirão o campo de ação da empresa no futuro por inibir a evolução de outras competências. Certas opções conscientes, omissões ou atitudes de acomodação podem situar a organização distante do ponto em que deveria estar para poder executar as jogadas seguintes.
Quando o antigo não se sustenta mas o novo ainda não nasceu: um exemplo
Entre vários exemplos de uma lógica de funcionamento que se ressente da qualidade dos resultados que gera e do grau de estabilidade que produz, o caso do setor de saúde suplementar é elucidativo. Ele é formado por entidades fornecedoras de serviços, diagnósticos e materiais; mediadores de atendimento que também gerem o risco indireto; empresas contratantes de usuários que fazem mediação em um segundo nível; e os usuários finais.
É um conjunto que funciona orientado pela quantidade e valor do fornecimento de serviços, e dos elementos que o acompanham; e no qual parte da parcela de ganho auferida individualmente se vê aumentada pela própria ineficiência do conjunto, pela busca de componentes de custos mais complexos e mais caros; pela desigualdade entre os agentes; e por desperdícios.
Impraticável manter o antigo; difícil competir no novo. Há diferenças expressivas entre os players em ação, no que diz respeito às competências desenvolvidas e à capacidade de se adaptar a novas condições. Alguns deles se especializaram em operar com baixas margens cortando custos e limitando funções internas. Quando necessitarem de competências robustas para gestão da eficiência, práticas consolidadas de governança, capacidade de gerar informações confiáveis para tomada de decisão e apresentar um modelo de expansão dotado de escalabilidade e padronização já testada, poderão perceber que outros players terão se adiantado com relação a aspectos como estes.
Adaptados às condições antigas de operação, deverão se ressentir de mudanças fora de seu controle. Para competir em um cenário diferente, terão de compensar suas deficiências, o que demanda certo volume de recursos e tempo que dificilmente terão justamente porque os concorrentes estarão à frente no tempo, e porque potenciais investidores exigirão justamente competências ligadas a governança e informações confiáveis que talvez não sejam capazes de oferecer dentro de um prazo aceitável.
Barreiras fracas à entrada são convites. Em certos segmentos, as barreiras à entrada são fracas e se referem a aspectos não-essenciais do negócio. Na região norte da Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, dificuldades de acesso físico local, predomínio de clientes de baixa renda, carências da estrutura de serviços públicos e de segurança têm funcionado em certa medida como inibidor de concorrência por restringir a presença de gestores e investidores.
A eficácia de fatores limitantes como estes tende a ser instável se considerarmos que se têm sido criados instrumentos para monitoração e realização de negócios à distância e que novos arranjos de negócio podem viabilizar a exploração de mercados antes tidos como não promissores. Um território antes considerado inóspito pode passar a gerar interesse por um player instalado em outro território ou por um investidor que queira começar a operar no segmento.
É preciso buscar uma posição melhor para o embate. O futuro será determinado pela capacidade de se amoldar a novos contextos que a entidade compreenda e tenha como se preparar para lidar. A preparação compreende não só desenvolver competências, mas também criar condições e desenvolver meios para dispor dos recursos necessários no futuro.
Se até hoje foi possível operar com uma gestão de eficiência medíocre, monitoração desleixada, controles fracos, critérios de glosa mal definidos e maus acordos com os demais agentes, pode ser que certos elementos venham a significar dificuldades em continuar a operar e se expandir; entre eles a presença de novos padrões epidemiológicos e a evolução natural do perfil demográfico dos usuários, assim como a manutenção da lógica dos indutores de demanda do mercado e de recompensa dos agentes.
Os palcos são diferentes mas as forças são as mesmas
A lógica de uma parte também está presente nas outras. É possível perceber os problemas de ter se adaptado ao passado ao examinar um segmento do mercado que sirva de base para a análise do conjunto. Mesmo quando a amostra não contém todas as características do conjunto maior, ela pode ter dentro de si a interação de forças que em essência são as mesmas que atuam sobre o conjunto.
Em outras palavras, mesmo que um segmento tenha suas peculiaridades, a partir dele podemos entender os fatores que influenciam o todo e sua dinâmica. Além de ser mais fácil o exame de uma parte do conjunto, alguns dos elementos dignos de interesse podem nela estar acentuados, ajudando no trabalho de análise ao salientar e simplificar o entendimento das relações entre os agentes.
A partir dessas relações, fica mais fácil entender tendências da indústria, o sentido da evolução e os determinantes de desempenho futuro. Para que seja mais completo, o exame depende de poder estabelecer também as diferenças entre a parte estudada e as outras partes, naquilo que cada uma tem de específico.
Às vezes as barreiras à entrada são muros baixos. O caso do nicho de serviço de saúde complementar da região Norte da Grande São Paulo é exemplar. Nele dificuldades aparecem com certa nitidez e intensidade elementos-chaves da evolução do mercado. O segmento de saúde voltado para a classe C teve ascensão notável até 2013. Os mesmos elementos que levaram a seu crescimento agem agora em sentido contrário. A estratégia empregada até 2013 pode não se revelar suficiente para lidar com a nova situação.
Os players desta região atendem um grupo de clientes cujo poder de compra tem, na média, se enfraquecido; ao invés de migrar para o setor privado para fugir da baixa qualidade do serviço público, os usuários seguem na direção inversa. Ter-se conformado a eles, suas necessidades e particularidades trouxe acomodação para certos players, porque em momento mais favorável era mais fácil sobreviver sem verdadeiramente praticar uma boa gestão da eficiência e sem oferecer realmente serviços mais avançados ou de melhor qualidade, uma vez que outros concorrentes não consideravam tão vantajoso ou conveniente dirigir esforços à conquista daquele território.
Para os players que atuavam nele, a posição assumida pelos concorrentes de fora funcionava como uma proteção. Internamente, perceberam-se menos motivos para que processos fossem estruturados e a qualidade das informações para tomada de decisão fosse boa. A ausência de certas competências não se colocava como obstáculo sério à atividade porque as antigas condições de funcionamento funcionavam como um lubrificante e tornavam possível obter margens estreitas porém aceitáveis de lucros, com resultados subotimizados mas suficientes para a sobrevivência do negócio.
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Adaptação é uma coisa diferente de adaptabilidade. Uma organização pode estar conformada ao ambiente em que opera e a um conjunto de problemas porque se acostumou a eles, porque conseguiu se preparar ao longo do tempo ou porque encontrou condições favoráveis a certo grau de acomodação. Entretanto, estar em condições e posição de poder se adaptar rápida e suficientemente quando as condições se alterarem é algo que pode ter desenvolvido ou não, e seu ajuste presente a condições conhecidas não significa que terá prontidão para fazer novos futuros ajustamentos na sua estrutura e na forma de funcionar.
Certa consciência de quão ajustado ao passado se está, e das dificuldades em se reinventar quando necessário, deve fazer parte do processo de crítica e autocrítica. Uma visão adequada depende de discernimento e capacidade de diagnóstico, uma visão clara do que acontece dentro e fora da empresa, boas informações e a capacidade de trabalhá-las. Em maior ou menor grau, essa necessidade sempre esteve presente entre competidores; para aqueles que operam em ambientes em que a rivalidade da competição é intensa, movimentos de concentração são visíveis e as relações entre os agentes são assimétricas, atentar para a questão se torna especialmente importante.
Este artigo é uma versão condensada de uma parte do E-book Uma Saúde a Repensar: dinâmica competitiva e espaços a ocupar no setor de saúde suplementar, escrito por mim recentemente e que reúne textos sobre posicionamento estratégico, tendências e desafios do setor.
O arquivo contendo o texto integral do livro pode ser baixado gratuitamente nos links indicados a seguir. Para fazer o download não é necessário fornecer dados pessoais nem senha.
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José Luís Neves é profissional da área de planejamento e finanças. Administrador e economista, tem mestrado em Administração pela USP. Possui mais de 25 anos de experiência em empresas de consultoria e do setor de serviços como gestor de finanças, coordenando processos de controladoria, financeiro e contábil. Reside em São Paulo, SP.
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