Na semana passada, o período Cancer Research, um dos mais relevantes no mundo da oncologia, publicou uma notícia animadora: o vírus zika, geralmente associado a problemas de saúde, despontou como um possível tratamento contra alguns tipos de câncer que atingem o sistema nervoso central. Os achados vieram do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
Tudo começou graças à afinidade já conhecida entre o zika e o cérebro, especialmente no início da vida. “Se o zika infecta a gestante logo após a fecundação, quando há um número maior de células-tronco no sistema nervoso do bebê, que está em formação, seu potencial destrutivo é maior”, explica Oswaldo Keith Okamoto, bioquímico da USP que conduziu o trabalho.
Ocorre que certos tipos de câncer também possuem suas próprias células-tronco, que fazem os tumores surgirem e se espalharem. “Sabendo disso e tendo em vista que as células-tronco tumorais que crescem no sistema nervoso têm semelhanças com as saudáveis, resolvemos investigar se o zika seria capaz de infectá-las também”, conta Okamoto.
Primeiro era preciso saber como o vírus se comportava com tumores em geral. “Testamos em tipos frequentes na população e que também possuem células-tronco, como mama, próstata e intestino. Mas vimos que o zika só infectava os do sistema nervoso central”, relata Okamoto.
Depois, o grupo comparou a ação do vírus em células saudáveis do sistema nervoso e entre as que carregavam o câncer. “Vimos que zika possui uma afinidade maior pelas tumorais. O resultado é interessante, porque são essas unidades que estamos interessados em destruir”, comenta o pesquisador.
Aí chegou a hora de avaliar o efeito em animais. E eis que, na maioria dos roedores do laboratório, o câncer regrediu. Em alguns casos, até as metástases (focos da doença espalhados por outros cantos do corpo) foram embora. Mais: os ratinhos tratados não apresentaram efeitos colaterais pela presença deste agente no corpo.
Os cientistas brasileiros têm recebido e-mails de pacientes interessados em se tornarem voluntários das etapas do estudo com seres humanos. Contudo, ainda é cedo demais para isso.
“Entendemos que indivíduos com câncer em estágio avançado ficam esperançosos com notícias do tipo, mas não dá para colocar a carroça na frente dos bois”, comenta a geneticista Mayana Zatz, da USP e coordenadora do Centro de Pesquisa do Genoma Humano e Células-Tronco, que também assina o trabalho.
Isso porque estamos falando do primeiro empreendimento do tipo. Ou seja, não dá para dizer que o zika teria o mesmo benefício em nós. E devemos ser cautelosos, uma vez que seus estragos à saúde já são comprovados. “Embora até 80% dos humanos infectados não apresentem sintomas, sabemos que ele traz malefícios”, salienta Okamoto. De novo, o maior drama parece estar reservado a bebês infectados durante a gestação.
Para que o zika um dia se torne parte do tratamento, os pesquisadores terão de cumprir algumas etapas. O foco agora é revelar em qual apresentação o vírus seria mais eficaz e seguro.
Ele será atenuado, como é o caso da vacina contra a febre amarela? Ou inativado, como ocorre no imunizante da gripe? Ou, quem sabe, “usado vivo” mesmo? Será que alterações no código genético do vírus serão necessárias para potencializar seu efeito e minimizar seus danos? São muitas perguntas que exigem respostas.
“Só a partir daí poderemos começar os estudos clínicos em pacientes”, destaca Okamoto. Ou seja, estamos falando de anos até que alguma estratégia prática surja desta investigação.
Mesmo assim, a comunidade médica está animada – com boa dose de sentido. “É uma possibilidade que segue uma linha de tratamentos oncológicos baseados em vírus que atacam o sistema nervoso e vem sendo estudada há anos, com potencial para ser revolucionária”, aponta Artur Malzyner, oncologista da Clinonco, em São Paulo. “Mas, para isso, precisamos ter paciência e esperar o passo a passo de comprovação do benefício”, reforça Malzyner.
Eles são chamados de vírus oncolíticos e geralmente passam por modificações genéticas feitas em laboratório para atacarem o inimigo sem atingir as células saudáveis. O primeiro tratamento do tipo foi aprovado em 2015 nos Estados Unidos – é uma versão alterada do vírus da família do herpes para tratar o melanoma, uma versão mais agressiva do câncer de pele.
Só que, no caso do protagonista do estudo brasileiro, houve uma habilidade natural em destruir somente as células cancerosas. “O zika se dirigiu preferencialmente a elas e não atacou outros órgãos”, revela Mayana. “Há ainda pesquisas semelhantes um pouco mais avançadas com o vírus da poliomielite em tumores do sistema nervoso”, completa Malzyner.
Tudo indica que, nos próximos anos, essa abordagem ganhará destaque especial nos periódicos científicos. Por ora, é esperar para ver.