— Quando eu morrer vão dizer, "agora foi mesmo? Já tavas fazendo hora extra aqui, nêga!"
É com bom humor e o típico sotaque peixeiro de Itajaí que, hoje, a dona de casa Maria Madalena Gomes de Mattos, 60 anos, recorda o longo caminho entre a descoberta do câncer de mama em 2008, o diagnóstico de total desesperança quando a doença voltou em 2009 e a notícia de que estava curada. Desde o início dessa batalha já se passaram quase 10 anos, mas que poderiam ter sido apenas três se ela não tivesse tomado uma decisão radical: participar de uma pesquisa clínica com um novo tratamento, sem nenhuma garantia de sucesso.
A oferta, indicada pelos médicos que a acompanhavam, veio depois de um tratamento agressivo quando o tumor apareceu pela primeira vez, já em estágio avançado, não surtir mais efeito. Tinham sido oito sessões de quimioterapia vermelha e uma cirurgia que retirou toda a mama esquerda, insuficientes para impedir o retorno do câncer no mesmo local, em outubro de 2009. Desenganada, sem nada a perder, Maria se reuniu com as cinco filhas e anunciou que tinha escolhido arriscar.
Sem nenhum custo, durante seis anos ela fez sessões de quimio a cada três semanas, mas com medicamentos e reações muito menos violentas ao organismo e com uma resposta muito mais efetiva ("parecia que era tratamento com uma vitamina, com água com açúcar. Chegava em casa e ia passar roupa, lavar a louça"). Os cabelos, que tinham caído nas sessões de 2008, começaram a voltar timidamente e não foram mais embora. Há três anos é considerada oficialmente curada e os remédios que usava foram liberados para comercialização em todo o mundo — em grande parte graças a ela, uma das duas "cobaias" do estudo no Brasil e a única em Santa Catarina.
As portas que se abriram para dona Maria — e que estão abertas a muitos outros pacientes oncológicos — foram as do Centro Novos Tratamentos Itajaí, que faz da cidade portuária do Litoral Norte uma das referências em aplicação de pesquisa clínica no país, principalmente relativa ao câncer. A cidade é, por exemplo, a única catarinense a figurar entre as que têm estudos sobre câncer colorretal e sobre dor oncológica, ambos com apenas mais 15 no país. No câncer de pulmão, há um tipo de tratamento feito só em Itajaí entre os municípios do Estado, com somente mais 11 iguais em todo o Brasil. Atualmente são sete protocolos de pesquisa recrutando pessoas no centro itajaiense: imunoterapia para câncer de pulmão e para câncer de bexiga, terapia específica para câncer de cólon e reto metastático e anticorpo para dor em paciente com câncer, além de estudos de lúpus, doença de Crohn e artrite reumatoide.
Para quem participa dos estudos, o tratamento é totalmente gratuito durante a pesquisa. Quando o protocolo termina, o fornecimento dos remédios também continua sem custos se o tratamento ainda estiver gerando melhora para o paciente. Ou seja, se não for alcançada exatamente a cura, mas o estudo apresentar resultados satisfatórios para manter sob controle ou diminuir o tumor, o paciente segue recebendo o tratamento enquanto esse benefício durar.
É o que acontece há três meses com José Carlos da Silva, 65 anos. Graças a um protocolo oferecido e já encerrado no Centro de Pesquisas Oncológicas (Cepon), em Florianópolis, ele vive há quase sete anos com um câncer de pulmão, hoje estabilizado. Ele começou o tratamento com químio convencional em Tubarão, onde mora, em 2011. Sem sucesso no controle da doença após quase cinco anos, foi encaminhado para um protocolo de pesquisa na Capital.
— O câncer dele já tinha metástase, ele tinha tentado todos os tratamentos disponíveis e a pesquisa era a última oportunidade para ele — lembra a doutora Carolina Dutra, oncologista no Cepon e que acompanhou o tratamento de José Carlos em Florianópolis.
Como tem casa de praia em Governador Celso Ramos, a logística não foi tão complicada para ele. Foram então dois anos trocando as longas sessões quimioterápicas por imunoterapia. Neste método, o remédio não atinge diretamente o tumor, como fazem a quimio e a radioterapia, mas sim ativa o próprio sistema imunológico do paciente para que ele combata as células cancerígenas.
— Com esse não sinto náuseas, não caiu o cabelo. Chego em casa e vou cortar grama, antes tinha que deitar e ficar duas horas descansando. Não tinha mais o que fazer, era a única saída. E mudou minha vida do dia pra noite — conta José Carlos, que com o fim do protocolo em fevereiro de 2018, segue recebendo a medicação porque está conseguindo manter o tumor estável, em nível satisfatório.
A presença de um laboratório de medicina patológica em Itajaí, especializado em diagnóstico, também reforça a posição de referência da cidade, embora trabalhe separado do Centro Novos Tratamentos. A clínica InfoLaudo é uma das três únicas do Sul do Brasil a ter um equipamento que consegue definir diferentes tipos de tumores, por meio de análise molecular mais precisa. Isso é importante principalmente por determinar prognósticos de determinados cânceres e também consegue eleger tratamentos mais eficazes, dependendo do tipo de tumor.
Até 2014 esse aparelho só estava disponível em centros maiores, como São Paulo, o que dificultava a agilidade dos laudos. Todas as análises tinham que ir para fora, entravam numa fila de processos e até retornar a Santa Catarina, demorava até 45 dias.
— Não se pode mais pensar em um prazo tão grande assim. O paciente com câncer tem pressa, por uma série de motivos quanto antes começar o tratamento, melhor a resposta. Hoje os laudos saem em questão de dois duas, às vezes no mesmo dia e em uma semana no máximo em casos mais difíceis — diz o responsável técnico do laboratório, doutor Daniel Cury Ogata.
Até o momento o InfoLaudos faz atendimentos particulares e por convênios, mas em alguns casos específicos, como no câncer de pulmão, é possível ter todos os exames gratuitos. Para isso, o paciente deve buscar informações com seu médico oncologista para conferir o procedimento e ver se o caso se enquadra nos programas para obter a gratuidade.
Até abril deste ano, o laboratório já tinha dado cerca de 300 diagnósticos de câncer com esse novo equipamento que agiliza o processo, contra 270 em todo o ano passado.
— A procura tem crescido. Além da rapidez, a precisão é um benefício muito importante. Há uma vasta gama de tratamentos e terapias e você tem que escolher, eleger a melhor para o paciente, o mais rápido possível — pontua Ogata.
A principal indicação da pesquisa clínica é para doenças em que não há um tratamento definitivo, de excelência e 100% eficaz, como vários tipos de câncer e o mal de Alzheimer, entre outras enfermidades. São casos diferentes, por exemplo, de um braço quebrado, em que a medicina já tem padrões consolidados e largamente comprovados para resolver o problema.
Cerca de metade de todas as pesquisas clínicas nascem nos Estados Unidos e outros 30% vem da Europa, sendo aplicadas em vários países ao redor do mundo a partir de lá. Nestas regiões, após desenvolvidos os medicamentos, são feitos os testes pré-clínicos em animais. Vencida esta etapa, ocorre também nos EUA e Europa a primeira das quatro fases de testes clínicos — agora já em humanos. Estes primeiros pacientes são literalmente as cobaias humanas, uma vez que os remédios passaram apenas por ajustes após aplicações em animais, e portanto não se sabe com certeza a reação em pessoas.
Nas duas fases seguintes, os novos tratamentos já se espalham por outros lugares, incluindo o Brasil e por consequência Itajaí. A etapa dois já consiste na adequação de doses, e a etapa três é quando se compara o novo tratamento com o que se tinha de convencional até então — já sabendo que a novidade "não mata". A comercialização começa geralmente quando o medicamento ou a terapia chegam ao estágio três, mas há casos em que isso é feito já na segunda fase.
— O câncer de pâncreas é um dos piores tumores, com baixa expectativa de vida. Se alguém fizer um estudo e na fase dois os pacientes já vivessem mais cinco anos, sairia para comercialização, porque é uma doença muito carente de tratamento — exemplifica o diretor do Centro Novos Tratamentos Itajaí, o médico oncologista Giuliano Santos Borges.
A fase quatro vem com o remédio já aprovado e comercializado e é feita para observar características adicionais. Um dos casos foi o Viagra, em que na etapa quatro se constatou que ele traria benefícios para a hipertensão pulmonar.
Os estudos são enviados por norteamericanos e europeus conforme a incidência do tipo de câncer em outros países e a distribuição do número de protocolos por país leva em conta a facilidade de recrutamento. Por um lado, o Brasil sofre com a burocracia para aprovações e liberações e também está longe de ser um exemplo de produção científica na área — até hoje, nunca patenteou aqui nenhum medicamento contra o câncer. Por outro, porém, o país se beneficia por contar com médicos bem conceituados e bem relacionados internacionalmente e por ter uma grande, multiétnica e miscigenada população, o que é bom para compreender variáveis no comportamento dos tratamentos.
A pesquisa ainda enfrenta diversas barreiras no Brasil. A primeira delas é a própria cultura do país em relação à informação sobre a doença, tanto na disponibilização dela para os pacientes quanto na procura por parte da população. Nos Estados Unidos há um banco de dados do governo, fornecido pela Biblioteca Nacional e atualizado por médicos de todo o mundo, com estudos abertos e concluídos em todos os países. Há inclusive obrigatoriedade de que os profissionais da medicina norteamericana deem publicidade a protocolos de pesquisa, justamente para que as pessoas tenham conhecimento e a liberdade de escolher entre a quimioterapia e o estudo.
Aqui, quando se fala de câncer logo vem a ideia de químio tradicional. A população não tem acesso para pesquisar novos medicamentos que estão sendo testados, não tem um banco de dados disso. Então para divulgar são nichos locais, literalmente é conhecer alguém, lembrar e indicar. Fica uma coisa quase paternal — lamenta o doutor Giuliano.
Outros grandes entraves brasileiros são a burocracia e a morosidade. Assim como aqui, todas as pesquisas nos Estados Unidos e Europa passam pelo comitê de ética e por todos os órgãos regulatórios médicos e sanitários. Mas enquanto lá demoram no máximo três meses para aprovar ou negar a sequência do estudo, no Brasil esse prazo muitas vezes supera um ano.
Além disso, a pesquisa com o objetivo de desenvolver novos medicamentos não tem grandes avanços até agora. Como dito anteriormente, o Brasil nunca descobriu um remédio para a doença. A maioria dos estudos se concentra em questões paralelas, como a incidência de determinados tipos de câncer na população brasileira.
Uma das consequências desse cenário ainda desfavorável aos estudos no país é o preço dos medicamentos e procedimentos do câncer quando eles chegam à comercialização, o que também inviabiliza que eles sejam absorvidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e distribuído gratuitamente. Partindo de dezenas de milhares de reais, são ironicamente liberados ao mercado após terem sido aprovados em testes com muitos... brasileiros.
— É um absurdo pagar tão caro (por tratamentos contra o câncer), mas se paga isso porque a gente não sabe produzir, sequer copiar. Uma forma imediata de baixar custos é aumentar pesquisa. Espera-se mais tecnologia, para que se comece a produzir remédios nossos e aí vai ganhar dinheiro vendendo a nossa tecnologia — destaca o doutor Giuliano.
Segundo o Ministério da Saúde, é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que formula e executa a regulação sanitária para a condução de pesquisas clínicas, implementando e monitorando os testes em conformidade com as Boas Práticas Clínicas, que são "padrões internacionais de qualidade éticos e científicos para o desenho, condução, performance, monitoria, auditoria, registro, análises e publicação de ensaios clínicos". A aprovação pela Anvisa é também necessária para ensaios clínicos com medicamentos e produtos para a saúde que são fabricados em outros países e, portanto, necessitam autorização para serem importados.
O ministério também afirma que as exigências da Anvisa estão alinhadas às melhores práticas internacionais e garante que o governo federal e os órgãos competentes têm buscado um melhor acompanhamento e entrosamento com o processo de condução de um protocolo de pesquisa clínica como um todo. No âmbito do Ministério da Saúde, foi publicado, em março deste ano, o Plano de Ação de Pesquisa Clínica no Brasil, com o objetivo de aumentar a capacidade do país em desenvolver e atrair ensaios clínicos.
Indo ao encontro dessa ideia de ampliar a pesquisa no país, embora com viés um pouco diferente, universidades do próprio Estado também se envolvem em atendimentos e estudos sobre o câncer. Um dos principais exemplos é a Rede Iberoamericana de Investigação em Câncer, que reúne grupos de países como Espanha, Panamá, Costa Rica, Chile e Guatemala e é coordenada pela Univali, de Itajaí, desde a criação, em 2012. O professor e reitor da Univali, Valdir Cechinel Filho, coordenada a Rede e afirma que o foco é a descoberta de novas formas de tratamento que façam parte da biodiversidade terrestre e marinha da América do Sul e Central — portanto com foco diferente da pesquisa clínica, que trabalha com tecnologia em laboratório.
Uma das descobertas recentes, divulgada há três anos, envolve o bacupari boliviano, também conhecido como achachairu — uma fruta exótica semelhante à ameixa-amarela e mais doce do que a sua versão nativa. Em testes feitos em laboratório, a árvore desta fruta demonstrou bons resultados contra linhagens de células cancerígenas, em especial em casos de próstata, mama e rim. O estudo teve parceria de pesquisadores da Unicamp. Foram testados diferentes partes da planta e os melhores resultados obtidos foram com os galhos.
O reitor chama a atenção para o fato de que, embora os resultados tenham sido promissores, inclusive com publicações em periódicos internacionais, é preciso cautela sobre o uso da planta em humanos pela necessidade de aprofundar os experimentos e pela falta de estudos sobre possíveis efeitos tóxicos. Tampouco o consumo da fruta pode trazer benefícios anticâncer, já que esses resultados ainda iniciais foram obtidos com partes da árvore.
Atualmente, as substâncias estão passando por estudos complementares no Centro de Investigação em Câncer da Universidade de Salamanca, na Espanha. Ainda assim, o resultado é uma das mostras de contribuição de pesquisadores da universidade com a busca por novas formas de tratamento da doença.
— Ter a Univali à frente da Rede é algo muito gratificante. A universidade cumpre sua missão de produzir e socializar ciência na área da saúde, podendo viabilizar subsídios para o futuro desenvolvimento de novos e efetivos agentes anticâncer — avalia o reitor.
No caso do bacupari boliviano, o cultivo da planta também tem relação com o Estado. As amostras usadas nas pesquisas da universidade vieram da propriedade de Walnir e Heloísa Machiavelli, em Camboriú. Quando compraram o sítio, há 15 anos, a espécie exótica — que a produtora prefere chamar de achachairu — já havia sido plantada pelo antigo proprietário, um boliviano. Eles decidiram apostar no cultivo. Hoje, possuem 16 árvores que, entre dezembro e março, produzem entre 600 e 900 quilos do fruto, que é consumido in natura, em sucos e geleias.
Os agricultores não tiveram contato com a pesquisa, apenas cederam as sementes, frutos e parte das árvores para os estudos, e não sentiram mudanças depois da divulgação dos resultados iniciais. Ainda assim, a novidade foi bem recebida pelos produtores.
— A gente sempre fica muito satisfeito. Não sabemos como estão esses estudos hoje, mas tudo que puder ser feito para ajudar é muito importante — afirma Heloísa.
Pacientes como Maria Madalena e José Carlos sabem muito bem a importância de toda e qualquer ajuda que a pesquisa proporciona. Assim como, possivelmente, centenas de milhares de pessoas pelo mundo, um dia, ainda vão saber. E agradecerão por alguém ter aceitado ser laboratório de si mesmo para que elas também tivesse uma chance.