O Brasil registra hoje o maior número de médicos de sua história. Somente a Faculdade de Medicina da UFMG, por exemplo, está formando mais de trezentos médicos na turma 145 (a turma 1 formou 17 médicos em 1917). Hoje, o país se aproxima da marca de meio milhão de médicos. Evidente que é uma conquista importante pois levaremos a taxa de médico por cada mil habitantes para cerca de 2,5, aproximando o Brasil da média dos países da OCDE que é de 3,0. Não podemos cair em duas ilusões. A primeira, a ilusão dos números, pois eles podem encobrir deficiências como a má distribuição dos médicos pelo território nacional e a profundidade da formação que receberam; a segunda ilusão seria imaginar que os problemas da saúde brasileira se resolverão apenas aumentando a quantidade de médicos.
No Brasil, os desafios na saúde são proporcionais à sua população de 210 milhões de pessoas, e também ao seu território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Tudo isto somado a um velho problema nacional: o pouco caso das autoridades e uma cultura frágil no trato com a saúde. Infelizmente, apenas em raros momentos a saúde recebeu, de fato, um tratamento destacado pelo poder público. Contudo, Gilberto Hochman, professor da Fundação Oswaldo Cruz, destaca dois períodos marcantes na promoção de estruturas para a saúde brasileira, duas décadas muito bem delineadas que podem lançar luz sobre nosso atual momento:
A primeira foi a década de 1910. Éramos uma República incipiente, baseada na exportação agrícola e ansiosa pela modernização e integração cultural com as nações desenvolvidas. Mas como construir um Brasil civilizado, moderno e desenvolvido com populações doentes e espaços insalubres? Diversas epidemias manchavam a reputação de nossa capital de então, o Rio de Janeiro. A magnitude da insalubridade do Brasil foi sintetizada de modo direto pelo médico Miguel Pereira em 1916, quando denunciou: “O Brasil ainda é um imenso hospital”. Com os esforços de figuras como, por exemplo, Alfredo Balena, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Belisário Penna, o Brasil melhorou sensivelmente suas instituições médico-sanitárias. O combate às doenças transmissíveis endêmicas e epidêmicas passou a ocorrer com maior organização tanto no litoral como no interior do país.
O segundo período essencial foi a década de 1980, sobretudo por causa da Constituição Federal de 1988. Foi neste momento que valores como o direito universal à saúde e controle social foram incorporados normativamente às nossas instituições. Conforme o artigo 196 da Constituição de 88, a saúde é um direito de todos e dever do Estado. Foi criado o SUS, o Sistema Único de Saúde, que apesar de todas as suas imperfeições fez o Brasil avançar – especialmente se colocarmos em perspectiva nossos séculos de mazelas. Conforme afirma o professor Paulo Saldiva da USP, entre os progressos que o SUS trouxe se encontram: o sistema nacional de transplantes, o sistema de hemocentros, o resgate de emergências e atendimento pré-hospitalar em situações de acidentes, o tratamento do HIV/aids, a distribuição de medicamentos para o controle de doenças crônicas não transmissíveis (como hipertensão e diabetes) e os sistemas de vacinação capazes de imunizar milhões de brasileiros em apenas um final de semana.
Já as falhas do SUS são bem conhecidas pelo povo – lembrando que sete em cada dez brasileiros dependem exclusivamente do sistema público de saúde. Problemas como longas filas, falta de medicamentos, falta de profissionais em zonas remotas, falta de leitos, discriminação no atendimento estão todos relacionados com, pelo menos, três dificuldades estruturais exaustivamente apontadas: financiamento, gestão e qualificação profissional. Se antigamente a “trindade maligna” combatida na saúde pública era “malária, doença de Chagas e ancilostomíase”, hoje ela poderia ser definida como “falta de financiamento, falta de gestão e falta de qualificação profissional”.
As conquistas brasileiras na saúde pública oriundas das décadas de 1910 e 1980 ensinam uma lição para o Brasil contemporâneo: a importância da participação de diversos campos da sociedade na causa da saúde. As “doenças” estruturais da saúde pública já foram diagnosticadas. Mas diagnósticos não curam. Para a elaboração dos “remédios” precisamos de um engajamento maior da sociedade civil. Precisamos estar juntos com os médicos nesta batalha. Além dos médicos, precisamos de sanitaristas, cientistas, administradores, políticos, educadores, enfim, cidadãos. Como já disse Dom Helder Câmara, os “brasileiros precisam de um novo pacto pela vida”.
* Davi Lago é escritor, mestre em Filosofia do Direito e ativista humanitário. Colabora com o blog com textos sobre marcos civilizatórios e sociedade contemporânea