A última Sant'Ana: saiba como um império de 103 farmácias ruiu

Publicado em 12/06/2018
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Tristeza e saudade marcam os dias que precedem a despedida da única loja que restou da rede

Impreterivelmente aos sábados, José Sant’Ana vestia o terno branco, descia na Rua Carlos Gomes e cruzava, apoiado numa bengala dourada, o estreito Beco do Mijo. O cheiro de creolina e urina da viela o guiava até a Farmácia Sant’Ana do Edifício Totônia, na Piedade, então a mais lucrativa de sua iniciante rede de drogarias. O ritual começou em 1978, ano da abertura do espaço. Lá, vistoriava os funcionários das 8h às 10h e retornava para o escritório, em Nazaré. Tivesse a oportunidade de cruzar, hoje, aquele mesmo atalho, transformado em Beco da Farmácia, encontraria a última ruína do seu antigo império em ascensão.

Ao cruzar o beco, à espreita na parede azul e rosa do prédio, veria o lamento no semblante fechado dos funcionários “sobreviventes”, no olhar que vagueia sem entender a busca. Sentiria o ar denso da preocupação exalada pelos únicos 25 funcionários restantes. Discretamente, com os olhos marejados, o vendedor Alberto*, 52 anos, irromperia o silêncio que impera em meio à gritaria em torno da Praça da Piedade: “Quem diria, né? Quem diria?”. A loja mais rentável se tornara a única e última. Depois dela, não haverá outra Sant’Ana. Ecoa a pergunta de Alberto:

Liquidação
Uma tarde nublada no final de maio dentro da Sant’Ana é como uma viagem no tempo. Não seria, certamente, a resposta procurada por Alberto. As prateleiras estão desorganizadamente cheias, filas de clientes se formam sem descanso, os preços baixos anunciados em letras garrafais de pequenos anúncios. Até mesmo o chão serve de estante para fraldas e caixas de produtos. Parece a antiga Sant’Ana: a ex-maior rede de farmácias da Bahia até 2012, quando tinha 103 lojas. 

Os funcionários se dividem entre a tristeza silenciosa impressa no semblante e a agitação para administrar o fluxo de clientes na loja. São as figuras vivas de quem começa a se entender como órfão. 

Às 15h, há 30 clientes e 12 funcionários naquela Sant’Ana. Vendedores e farmacêuticos explicam pacientemente o porquê de a farmácia estar abarrotada de produtos com até 70% de desconto.

“Aqui tem o estoque de todas as outras lojas”, ouve-se um funcionário responder a um grupo de estudantes do curso pré-vestibular vizinho da farmácia. 

Prateleiras da loja da Piedade estão abarrotadas
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Ali, na última Sant’Ana, os funcionários começam a questionar o próprio futuro. Todos trabalhavam nas últimas quatro lojas abertas: Imbuí, rodoviária, Brotas e Manoel Dias, fechadas no dia 14 de maio, por ordem da Brazil Pharma, dona do negócio desde fevereiro de 2012. No dia 17 de maio, já estavam na loja da Piedade. Só não sabem até quando.

Quando as dúvidas sobem de vez à cabeça, sem espaço possível para outro pensamento, Gabriel* se junta ao colega Alberto em frente à farmácia. O ato é repetido várias vezes por outros funcionários ao longo da tarde. Um respiro necessário em meio à temperatura sufocante. 

Órfãos
O encontro de Gabriel e Alberto ocorre no final na tarde, às 17h30. Sob os prédios vizinhos, já incide a luz dourada do pôr do sol. Os dois observam silenciosamente a chegada dos clientes à drogaria do lado de fora do espaço, cuja calçada é disputada por três ambulantes. Enquanto Gabriel se recolhe a uma das pilastras laterais do edifício, Alberto avança um pouco à frente e comenta:

“É assustador”

A imprevisibilidade do final dos seus 15 anos de história na Sant’Ana o aterroriza.  O vendedor vivenciou as glórias do auge e as agruras da derrocada da farmácia. Começou a perceber os problemas em 2013: um ano após a Farmácia Sant’Ana ser vendida para a Brazil Pharma por razões ainda não esclarecidas. Antes de chegar à derradeira sede da Piedade, atendia em Brotas. A timidez é rompida pela confissão: “Já estava todo mundo muito ansioso. Não sabíamos o que iria acontecer”.

Demissões
No dia 31 de janeiro, 478 colegas varejistas já haviam sido demitidos dos cargos; entre os dias 6 e 9 de abril, foram mais 450 vendedores demitidos. Em seguida, Alberto segue o desabafo: “Não sabemos o que vai acontecer”.

O que fará Alberto, quando chegar o inevitável fim? Os colegas demitidos em janeiro tiveram as verbas rescisórias, R$ 3,7 milhões, pagas; os de abril aguardam o pagamento de R$ 2,3 milhões, que deve ocorrer caso o acordo com os ex-patrões seja homologado. Uma audiência sobre o assunto, no dia 28 de maio, foi cancelada por conta da greve dos caminhoneiros; será remarcada. 

O temor, na verdade, é outro: o desemprego. Aqui, abrimos aspas para Welma, ex-colega de Sant’Ana. No outro lado da cidade, em Sete de Abril, ela relata:

“Imagine, meu filho internado com meningite. Quando eu chego no trabalho, no final de janeiro, recebo a notícia da demissão. Dois baques. Eu, com dois filhos, sem emprego, sem ajuda”, lembra Welma.

Mal administrado
A timidez embarga novamente a fala e Alberto retorna para o lado de Gabriel. É a vez do farmacêutico compartilhar medos e recordações. Fala com emoção da Farmácia onde trabalha há, ao menos, sete anos. 

Começa a chuviscar, os primeiros ambulantes desmontam as bancas de trabalho, quando nos conta: “Olha o que a administração errada fez. Lembro de um mês em que comemoramos R$ 60 milhões de vendas na Bahia. Agora, estamos aqui: sem saber quais cartas eles têm nas mãos, o que nos pode acontecer”. Gabriel tenta persistir no bom humor, mas sabe o quanto a crise na Sant’Ana se tornou a sua própria cruz. “Estou extremamente ansioso. Até um cara atlético eu era, nunca tive barriga até começar essa queda da farmácia”, comenta.

O traço tragicômico não lhe impede de seguir firme: contratará um advogado, se preciso, para que receba 100% do valor. De janeiro a abril, foram 206 farmacêuticos demitidos pela Sant’Ana na Bahia - a dívida do primeiro mês (R$ 1,4 milhão) já foi paga; a de abril, equivalente a R$ 1,8 milhão, só deve ser quitada após homologação judicial. Os valores correspondem a 70% do que seria devido: a Brazil Pharma declarou não ser possível pagar integralmente todos os ex-funcionários. “Mas eu quero meu pagamento completo. Não vou abrir mão disso”, conclui Gabriel.

Na Piedade funciona ainda a última loja da rede de farmácias Sant'Ana
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Nova controladora não paga aluguéis

Mas qual a situação da rede de farmácias atualmente? Diego Montenegro, advogado especialista em recuperação judicial, explica, com base no plano de recuperação apresentado no dia 28 de abril à 2ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais. A dívida trabalhista do grupo Brazil Pharma, controlador da Santana, atingiu a cifra de R$ 30,6 milhões após correção feita pelo Administrador Judicial. Já em relação aos "pontos comerciais oferecidos à venda para pagamento das dívidas", o proprietário de 29 deles declarou que a Brazil Pharma não poderia incluí-los na negociação porque “não tem pago os alugueis”.

Na Avenida Sete, encontramos um dos amigos próximos da família Sant’Ana. Tranquilo, interrompe a ida para uma partida de dominó com os amigos para nos explicar o provável destino dos imóveis que,  durante anos, foram sedes da Sant’Ana. A família, inclusive, é dona da maioria deles.

“Eu não consigo mensurar quantos são espaços próprios da família. Mas esse mesmo, da Piedade, é da família. Depois de fechar, eles devem colocar para alugar. E, por ser no centro, deve alugar rápido”,diz.

A três quilômetros dali, na Graça, uma placa de ‘Aluga-se’ já foi fixada à porta da antiga farmácia, há tempos   fechada.

O destino final da Sant’Ana é incompreendido até por ele, desde o início espectador próximo da história da rede. “A gente só pode concluir que foi algum erro de gestão. Quando era da família, víamos a diferença. A Brazil Pharma não parece ter entendido como funciona a administração de farmácia”, opina. 

Na família, parece ser um assunto pouco mencionado. “Tem tantos outros negócios familiares que estão em crise e ninguém fala nada. Não somos mais donos da Sant’Ana, não temos muito o que falar”, respondeu um parente, sob anonimato. A única preocupação de Zezinho, relatou um dos seus filhos, é que todos os funcionários demitidos sejam pagos. Um dos conhecidos brinca: “Seu José passava por aqui tão cheio de si. A vida vai e reserva isso”.  

A história da Sant’Ana começa em 1945, com a inauguração da primeira farmácia em Itaberaba pelo médico José de Lemos Sant’Ana. A segunda drogaria da cidade da região da Chapada Diamantina é vendida quando o pojuquense decide se mudar, com a esposa, para Salvador. Na capital, funda a primeira Sant’Ana, na segundo metade dos anos 50, no bairro das Mercês. Pouco tempo depois, já é a maior rede de drogarias na Bahia. Mas, bastou um intervalo de três meses para destruir todo o patrimônio da Sant’Ana.

Na madrugada do dia 20 de dezembro, um incêndio atinge o galpão central da Sant'Ana na Avenida Paralela, onde era armazenado o estoque da drogaria. Vinte dias antes, a Sant’Ana do bairro da Graça já havia sido consumida pelo fogo. “Ele [Zezinho, filho de Seu José] não sabia muito o que fazer, principalmente depois disso. Tinha medo de que as coisas não voltassem ao normal. Cheguei a alertá-lo: é melhor vender”. O atendimento a essa sugestão demorou. Só veio depois do grupo se reerguer e chegar a 103 lojas no início desta década.

A Brazil Pharma, criada em 2009 pelo banco BTG Pactual, então decide investir justamente no mercado farmacêutico. O grupo oferece, em fevereiro de 2012,  R$ 350 milhões para comprar a rede de farmácias criadas por José. O negócio parecia realmente promissor: ao assumir a gestão, a Brazil Pharma planejava abrir mais 83 lojas no estado, expandir o negócio já bastante sólido. 

O passar dos anos revelou o contrário. A crise se torna pública em janeiro de 2018: naquele mês, a empresa ajuíza um processo de recuperação judicial, com dívida de R$ 1,3 bilhão. Na lista das estratégias apresentadas pela empresa: a venda de todos os pontos comerciais da Farmácia Sant’Ana e da Big Benn. 

Histórica como a antiga residência de Castro Alves
Zeltman, 57, e Márcia Rabelo, 54, são atraídos pela impressão de velhos tempos da Sant’Ana. Compravam lá desde a adolescência. O grisalho Zeltman relembra, ao sair da farmácia: “Tinha um diferencial. Uma farmácia da terra, com preços baixos. A gente só comprava nela”. Naquela tarde, durante compras na Avenida Sete, perceberam a proximidade do fim. “Minha última entrada na Sant’Ana”, prevê Márcia, na despedida.

Outro também já saudoso acompanhou até os passeios sabáticos de Seu Sant’Ana em direção à sua menina dos olhos: é o porteiro Anderson Correia, 45. Sentado em uma cadeira giratória estofada, observou, num prédio vizinho, quase 40 anos da loja.

“Farmácia? Nem existia outra. Ou era a Sant’Ana ou era a Sant’Ana. Quando eu cheguei aqui, as prateleiras eram todas cheias, não faltava remédio nenhum”, conta.

Natural de Vitória da Conquista, ele é porteiro justamente do prédio que carrega o nome do pai de José Sant’Ana, Raymundo. No ano de 1854, o edifício, na época um casarão, foi a residência do poeta Castro Alves, conforme anuncia uma placa de pedra fixada ao lado da portaria lateral. Mais de um século mais tarde, em 1978, José fez do casarão um prédio de quatro andares e decidiu homenagear o pai. Um ano antes, também por iniciativa de José, ganhou forma o Edifício Totônia, homenagem a sua mãe. O beco contíguo à Sant’Ana é o beco da família Sant’Ana.

O sol finalmente se põe, é noite em Salvador. Da Praça da Piedade, vê-se o letreiro colorido de vermelho, azul e branco da farmácia. A história da Bahia revela-se na placa tricolor. Amanhã será outro dia. Talvez o último da vida da farmácia. Da velha Sant’Ana, escondida sob as sombras do passado glorioso, não restou nada.

 

Fonte

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